quinta-feira, fevereiro 24, 2022

Tensão na Ucrânia piora quadro inflacionário global - Editorial




O precário quadro fiscal e as incertezas eleitorais deixam pouco espaço para o BC ser flexível

Além dos sérios e preocupantes impactos humanitários, as tensões na Ucrânia devem ter repercussões econômicas importantes. Agravam o já complicado quadro inflacionário global e se somam a outras forças que atuam para desacelerar o crescimento mundial.

Ainda é cedo para delimitar o tamanho do estrago, mas parece certo que o custo de energia será mais alto. A Rússia é o terceiro maior produtor de petróleo do mundo, e está na segunda posição na exploração de gás natural. Ontem, a cotação do petróleo brent encostou perto de US$ 100 dólares o barril.

A alta dos custos de energia ocorre a despeito de, neste momento, os Estados Unidos e a Europa terem imposto sanções apenas moderadas, sem limitar as exportações atuais. As sanções mais pesadas ficaram para depois, na esperança de forçar uma negociação e evitar que as tensões na Ucrânia evoluam para uma guerra.

O presidente americano, Joe Biden, anunciou o bloqueio de duas grandes instituições financeiras russas nos mercados ocidentais, além de limites à negociação da dívida soberana do país. O chanceler alemão, Olaf Scholz, suspendeu a certificação do gasoduto Nord Stream 2, que fará uma ligação direta entre a Rússia e a Alemanha, sem passar pela Ucrânia. O projeto, porém, ainda não está operando, e a medida basicamente limita a oferta futura de gás.

Os mercados financeiros mundiais, no entanto, já precificam uma boa parte dos riscos de uma escalada no conflito, com a queda das Bolsas, movimento de fuga de investidores para ativos de menor risco e alta de preços de commodities, incluindo agrícolas, metais e energia.

O resultado mais provável de tudo isso é um novo impulso na inflação, num momento em que os bancos centrais de países desenvolvidos enfrentam dificuldades para reinar sobre a carestia criada pela pandemia.

No caso das economias ricas, o que preocupa sobretudo é a alta dos custos de energia. Economias de renda média e baixa devem sofrer também com a alta de preços de alimentos. A Rússia e a Ucrânia são importantes produtores de trigo. Há impactos indiretos: a alta de preços do gás deve encarecer os fertilizantes, que são muito dependentes desta fonte de energia.

Ainda não está completamente claro como o Federal Reserve (Fed) e o Banco Central Europeu (BCE) vão reagir. De um lado, a inflação tende a se acelerar. Mas, de outro, o crescimento econômico tende a perder vigor, com a maior aversão a risco e a corrosão da renda das famílias, provocada pela alta de preços de alimentos e de energia.

Os juros mais longos dos Estados Unidos expressam um pouco desse dilema. O retorno do título de 10 anos do Tesouro americano recuou. Esse movimento pode refletir apenas uma fuga dos investidores para o porto seguro dos papéis do governo dos EUA. Pode ser também uma indicação de que o aperto monetário sinalizado pelo Fed será temporário - e as forças recessivas tenderiam a prevalecer, demandando novos estímulos.

No Brasil, a cotação do dólar caiu 1,09% ontem, para R$ 5,05, transmitindo a falsa impressão de que a nossa economia está alheia aos impactos da crise geopolítica na Ucrânia. Quem mostra a verdade dos fatos é a curva de juros futuros, que registrou alta, também no pregão da terça-feira.

A taxa de câmbio reflete vários fatores. Alguns meramente técnicos, como o fim do chamado “overhedge” em 2021, que fazia os bancos comprarem dólares em excesso no mercado futuro. Há ainda uma rotação de carteiras de investimentos, com a migração de capitais estrangeiros das ações superavalorizadas de tecnologia para ativos mais baratos em países emergentes. A alta das commodities favorece o real. Os juros em dois dígitos também são uma poderosa força atratora de capitais voláteis.

O recado que o mercado de juros dá, porém, é que o ganho obtido com a valorização do real é insuficiente para cobrir os custos mais altos de produtos importados. O principal é o petróleo, mas pode haver impactos também nos preços de alimentos, com a alta das cotações do trigo, milho e soja.

Ao contrário dos banqueiros centrais de países desenvolvidos, por aqui a política monetária é calibrada com olho exclusivamente na inflação. O precário quadro fiscal e as incertezas eleitorais deixam pouco espaço para o Banco Central ser flexível, daí os mercados colocarem prêmios na curva de juros. O desdobramento mais provável será mais inflação e menos crescimento econômico.

Valor Econômico