domingo, fevereiro 27, 2022

Os tanques e o sonho europeu




Quando há um conflito, a vida de gente comum é atropelada pela geopolítica

Por João Gabriel de Lima (foto)

Numa crônica publicada na última edição da revista Monocle, o escritor ucraniano Artem Chekh descreve um passeio pela noite de Kiev. Era dezembro e, depois de comer uma pizza, ele e a mulher, Irina, observam as luzes natalinas na Praça Sofia. Constatam que as danceterias Killer Whale e Closer seguem lotadas em pleno inverno. Espantamse com a fila no Mustafir, e planejam voltar lá algum dia para comer os famosos pasteizinhos chineses do restaurante.

Artem participou das manifestações da Praça Maidan que, em 2014, derrubaram um governo fantoche de Moscou. No ano seguinte, alistou-se para lutar contra os russos. A experiência rendeu seu livro mais famoso, Zero Absoluto. Quando escreveu a crônica da Monocle, Artem temia ser convocado novamente. Pensava também em Irina, que trabalha com filmes. Ainda seria possível fazer cinema numa Ucrânia invadida?

Quando há um conflito, a vida de gente comum é abruptamente atropelada pela geopolítica. “Em Belgrado, na guerra da Sérvia, observei que as pessoas se preocupavam primeiro com a família e depois em conseguir coisas básicas como comida, que começava a faltar nos supermercados”, diz o jornalista Ricardo Alexandre, entrevistado no minipodcast da semana. Ele acaba de lançar um livro sobre o Afeganistão e é um dos maiores especialistas portugueses em conflitos internacionais.

A corrida aos supermercados já vem acontecendo em Kiev, como mostra a cobertura exclusiva – em texto e vídeo – do repórter Eduardo Gayer para o Estadão.

O bom jornalismo sempre esteve atento para o efeito das guerras sobre o cotidiano. Em 2003, Jon Lee Anderson, da The New Yorker, conversou com representantes da classe média iraquiana às vésperas do bombardeio americano. Um dos entrevistados era um violinista que não sabia se sua orquestra continuaria existindo. Era iraquiano. Podia ser nova-iorquino.

Da mesma forma, o médico japonês descrito no livro Hiroshima, do repórter John Hersey, podia ser americano. Ele estava na varanda de seu hospital quando a bomba atômica o lançou a vários metros de distância. Teve o azar de estar do lado errado no conflito em 1945.

Da guerra, o ucraniano Artem guardou a frase de um colega do front: liberdade é poder se preocupar com coisas triviais. A Rússia invadiu a Ucrânia, e talvez não seja mais possível a Irina e Artem pensar em pasteizinhos chineses. Eles também sonhavam com um futuro europeu para o filho de 11 anos. Grande parte dos ucranianos escolheu esse futuro em eleições. A geopolítica, com seus tanques, pode fazer terra arrasada do sonho. 

O Estado de São Paulo