Publicado em 23 de fevereiro de 2022 por Tribuna da Internet
Luiz Felipe Pondé
Folha
“De repente, tornou-se indiferente pra mim não ser moderno”, disse Roland Barthes (1915-1980). Que libertação! Chega a hora em que devemos investir num gesto de fôlego: encontrar nosso lugar no mundo. O culto à modernidade é uma prisão.
E se essa indiferença for, hoje, um gesto de recusa displicente ao ridículo da fé moderna? Falarei de duas formas sobre esse culto moderno: a fé em si mesmo e a fé no progresso.
APEGO À MODERNIDADE – A indiferença sem objeto pode nos levar à ideia de um estado místico ou simplesmente à ideia de um estado de alienação completa em relação ao mundo. Não é dessa indiferença sobre a qual falo.
Em termos contemporâneos, arriscaria dizer, com razoável consistência, que a indiferença em relação ao apego à modernidade —apego este tão ridiculamente cantado em prosa e verso pela Semana de Arte Moderna de 1922 e seu umbigo futurista— significa uma diminuição do nível de ansiedade.
E para tal, se existir algum princípio passível de ser enunciado, ele seria o seguinte: desista de controlar todas as coisas e desista de ter sucesso. Ou uma máxima derivada diretamente da anterior. Desista do autoconhecimento como chave do sucesso. A submissão da ideia de autoconhecimento ao conceito de sucesso é uma das chaves da falácia da cultura contemporânea.
NA ERA DO BBB – Como alguém pode enunciar um princípio tão ousado na era do BBB como paradigma do “coaching” emocional? Em breve, não existirá mais muita diferença entre a psicologia e o marketing, seja este de teor ideológico, seja este focado no modelo do Linkedin.
Feita tal digressão, com a intenção expressa de indicar que a indiferença em relação à modernidade passa necessariamente pela desistência do sucesso e pela aceitação do fracasso do controle métrico sobre as coisas, nos indaguemos agora qual seria a fé na modernidade. Essa fé pode se apresentar de várias formas.
Não se trata de fazer uma defesa do retorno à vida natural. Nunca há retorno, a menos que acontecesse uma destruição radical das condições materiais que possibilitam a vida moderna —o que, em sã consciência, ninguém deseja.
MÁQUINA SOCIAL – A indiferença em relação à modernidade se refere à recusa do ato de fé em si, atribuído à máquina social moderna de mundo, vista como um bem em movimento acumulativo de felicidades.
A obra do sociólogo francês Alain Ehrenberg, no meu entender, aponta para um dos tipos de crise de fé na máquina social moderna e ilumina uma das formas referidas acima. No seu livro “La Fatigue d’Être Soi: Dépression et Société”, Ehrenberg indica um dos equívocos dos modos de regulação da vida na sociedade moderna.
O contemporâneo nos chama a sermos indivíduos autônomos e responsáveis por nossas vidas, numa espiral acelerada. Nesse cenário, as relações entre as pessoas são marcadas pela demanda, cada mais alta, de “high performance” e sucesso.
DEPRESSÃO SOCIAL – Ehrenberg definirá a depressão de caráter social como, justamente, o reverso desse desempenho. Nós fracassamos necessariamente em nos tornarmos esses indivíduos autônomos e responsáveis.
A expressão que o sociólogo usa é “insuficiente” — e aqui ele recolhe a grande tradição agostiniana do século 17 francês. O ser humano é insuficiente para enfrentar o mundo. Sempre, em todas as vezes.
Na modernidade, passamos a acreditar que, inclusive pelos psicofármacos, pela educação e pela psicologia, poderíamos chegar à “high performance”, cheios de felicidades e de sucessos.
FÉ NO PROGRESSO – Essa ideia de acúmulo de sucessos e felicidades nos leva a outra face da fé moderna: a fé no progresso. Em 1937, Robert Musil (1880-1942) proferiu uma conferência em Viena, em que ele chamava a atenção para o risco presente no progresso, na medida em que este carrega em si uma grande semelhança com a estupidez.
Essa conferência, intitulada “Sobre a Estupidez”, está publicada no Brasil pela editora Âyiné. Nela, Musil falava, já em 1937, que, como tínhamos acumulado muito progresso até então, o risco de aumento da estupidez era imenso.
De lá para cá, o progresso só aumentou. Basta olhar o mundo corporativo para ver como a estupidez e o progresso sempre se dão muito bem.