quinta-feira, fevereiro 24, 2022

Guia rápido para acompanhar os acontecimentos na Ucrânia e na Rússia

 




Impérios que ascendem e desmoronam, guerras, transferências de população e ligações de muitos séculos entre países criam um quadro geral intrincado. 

Por Vilma Gryzinski

Vladimir Putin se considera imbuído da missão quase sagrada de corrigir injustiças históricas. Qual a maior delas? Uma Ucrânia independente.

Parece absurdo contestar o direito de um povo a ter seu próprio país, mas é exatamente o que Putin está fazendo. Não é fácil tentar entender a altíssima voltagem geopolítica, militar e emocional da questão, os desdobramentos da intervenção russa, os complexos acordos internacionais, a mistura de populações e as origens históricas do atual conflito.

O rápido resumo abaixo pode ser de alguma ajuda.

Acordos de Minsk

Tudo o que Putin está fazendo agora é quase uma repetição ampliada do que fez em 2014, quando tomou a Crimeia e enveredou pela região de Donbass, na faixa da fronteira entre a Ucrânia e a Rússia.

França e Alemanha tomaram a iniciativa de congelar a intervenção e mediar um cessar-fogo. Os acordos foram assinados em Minsk, na Belarus. Como não poderiam reconhecer o óbvio – ou seja, os territórios estavam definitivamente ocupados -, a saída foi acenar com uma futura restauração da soberania ucraniana, com cláusulas garantindo um status especial para a população etnicamente russa.

Emmanuel Macron tentou repetir o truque na crise atual, mas obviamente foi feito de bobo. Putin já tinha decidido jogar os acordos de Minsk no lixo. Agora, a chancelaria francesa cancelou um encontro entre os respectivos ministros das relações exteriores que, mesmo antes da manobra de Putin, já parecia surreal. Corretamente, disse que “o presidente Putin não honra mais a assinatura da Rússia”.

Artigo 5

É a cláusula que prevê a defesa coletiva dos Estados Unidos e dos países europeus integrantes da Otan, a organização criada em 1949 para se contrapor ao bloco soviético.

É também o principal motivo pelo qual os ucranianos que vivem à sombra da Rússia querem entrar na Otan. Sob o guarda-chuva da organização, um ataque contra qualquer um de seus integrantes tem que ser respondido como um atraque contra todos.

Como os dois lados têm armas nucleares, isso garantiu desde o fim da II Guerra Mundial o equilíbrio de forças: a União Soviética não avançaria, por exemplo, sobre uma Alemanha (então Ocidental) indefesa, os Estados Unidos não interviriam militarmente em apoio a satélites soviéticos que tentassem se desvencilhar de Moscou.

Foram estes satélites, justamente, que correram para a Otan assim que o comunismo desmoronou, tentando se proteger do intervencionismo russo, sob qualquer de suas encarnações políticas.

Mesmo com a garantia de proteção coletiva, países menores como Letônia, Estônia e Lituânia, com populações de origem russa que podem ser usadas como pretexto intervencionista, da mesma forma que na Ucrânia, temem que sejam os próximos da lista.

Crimeia

Mesmo os russos que não apoiam Putin foram favoráveis à anexação da Crimeia, em 2014. Até Alexei Navalny, atualmente hóspede do sistema prisional russo, foi ambíguo a respeito.

Putin evocou o “erro histórico” que levou a península a se tornar parte da Ucrânia no discurso de segunda-feira.

“Em 1954, por algum motivo, Khrushchev tirou a Crimeia da Rússia e a deu para a Ucrânia”.

É verdade, o “algum motivo” era uma jogada de Nikita Khrushchev, ex-secretário do partido na Ucrânia, para consolidar o apoio da cúpula soviética no período de disputas internas que se seguiu à morte de Stálin.

A península que avança sobre o Mar Negro já foi palco de uma das mais bizarras guerras da história. Tendo como pano de fundo os impérios em ascensão e em declínio em meados do século 19, a guerra começou por disputas sobre os direitos de católicos e cristãos ortodoxos em Jerusalém, então sob domínio otomano.

A Rússia imperial perdeu para a coalizão integrada por França, Reino Unido e otomanos. Seria quase uma guerra esquecida se não fosse um erro de comunicação que levou um comandante britânico a desfechar a incrivelmente absurda carga da cavalaria ligeira contra a artilharia russa, que estava em posição de vantagem do terreno.

O poeta Tennyson eternizou o ataque que se tornou sinônimo de coragem sob o fogo inimigo – e de erro clássico de comando. “A eles não cabe perguntar por quê/ A eles cabe fazer ou morrer”, escreveu o poeta em versos que depois foram adaptados para os marines americanos e viraram música do Iron Maiden.

Para os russos, a Crimeia se tornou mais um símbolo de como potências estrangeiras se aliavam contra eles.

Com ou sem guerra na Ucrânia, a Crimeia não vai tão cedo mudar – de novo – de lugar no mapa.

Donbass

É o nome genérico das duas regiões separatistas da fronteira da Ucrânia com a Rússia, Donetsk e Luhansk, agora reconhecidas oficialmente por Putin como repúblicas independentes.

A regiões têm maioria em volta de 50% de russos étnicos, tanto por migrações naturais quanto pelas grandes transferências de população que Stálin promoveu depois do fim da II Guerra. Nem todos, obrigatoriamente, gostariam de se separar da Ucrânia. O irredentismo foi insuflado, treinado e armado pela Rússia. Já morreram 14 mil pessoas nessa linha de combate.

A prova mais trágica da intervenção russa aconteceu em 17 de julho de 2014, quando um sofisticado míssil antiaéreo russo, disparado por engano e provavelmente despreparo dos operadores ucranianos, estilhaçou no ar um avião da Malaysian Airlilnes que sobrevoava a região. Morreram 283 passageiros e 15 tripulantes.

As comemorações mostradas depois que Putin assinou a “independência” das duas regiões foram feitas por pessoas que se identificam com a Rússia, por origem e língua materna.

Menos de uma semana antes, os prepostos locais de Moscou tinham ordenado a retirada, para território russo, de mulheres, crianças e homens acima de 55 anos, com o objetivo de dar a impressão de que a “agressão” ucraniana estava criando uma onda de refugiados.

Finlandização

Uma alternativa bem simpática a Moscou seria a transformação da Ucrânia numa cópia da Finlândia durante a Guerra Fria: independente para efeitos internos, “neutra”, ou não alinhada, para efeitos externos. Ou seja, a submissão silenciosa de um país menor a outro maior.

A Finlândia fez o acordo saída de experiências traumatizantes: a Guerra do Inverno, os três meses do inverno de 1939 em que o país resistiu à invasão soviética numa campanha travada a temperaturas de 40 graus abaixo de zero. Um ano e meio depois, veio a invasão da Alemanha nazista e depois a reação soviética.

A Finlândia só se salvou de se tornar um país vassalo, depois da derrota da Alemanha, ao aceitar o acordo de “neutralidade” com Stálin.

Uma Ucrânia finlandizada atenderia às demandas cada vez mais extravagantes de Putin?

Desde ontem, ele passou a usar a palavra desmilitarização da Ucrânia, com exigências absurdas e ainda se dá ao luxo de ironizar. Se a Ucrânia renunciasse para sempre a entrar para a Otan, os líderes ocidentais não precisariam perder a pose.

Holodomor

É o nome da Grande Fome, a catástrofe promovida por Stálin para dobrar a oposição dos agricultores ucranianos, os kulaks, que resistiam à coletivização forçada.

Holodomor quer dizer literalmente matar de fome, e foi isso que aconteceu em escala avassaladora na Ucrânia entre 1932 e 1933. Os cálculos mais moderados avaliam que morreram de 3,5 a 5 milhões de pessoas, reduzidas à inanição pelo confisco sistemático de toda a produção agrícola.

O trauma coletivo ficou gravado na consciência nacional, mas durante a era comunista não podia ser sequer evocado.

Algumas fotos da época mostram pessoas em andrajos que parecem fantasmas já no limiar entre a vida e a morte. Persistem relatos de que, alucinadas pela fome, algumas vítimas praticaram canibalismo.

A Grande Fome também escreveu uma nota de rodapé infame na história do jornalismo. Walter Duranty, o correspondente do New York Times em Moscou, ficou conhecido pela cobertura inacreditavelmente simpática à União Soviética. “As condições são ruins, mas não existe fome”, escreveu ele numa das reportagens pelas quais ganhou o Prêmio Pulitzer.

Em outra, ele evoca Lênin ao tratar da coletivização na marra. “Para falar brutalmente, não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos”.

Dá para acreditar?

Maidan

Muito do que Putin está fazendo atualmente é para “corrigir” uma ofensa que ele considera impossível de digerir: a revolução de Maidan.

Maidan é o nome da praça central de Kiev onde se concentraram os protestos de 2014, que enfrentaram a repressão brutal até a fuga do presidente Viktor Ianukovitch, que foi para a Rússia e não voltou até hoje.

Ianukovitch desencadeou os protestos quando, em vez de assinar um acordo que estabelecia as bases para a Ucrânia eventualmente entrar para a União Europeia, foi para Moscou e selou um pacto econômico com Putin. Seria uma jogada mestra de Putin se não fosse pela reação popular. Do ponto de vista do ex-agente da KGB, que vê o mundo sob a ótica da conspiração, a queda de Ianukovitch foi um golpe patrocinado pelos Estados Unidos.

Ele se vingou com a anexação da Crimeia e a intervenção em Donbass, agora oficializada.

A vingança continua.

Memorando de Budapeste

Quando o comunismo começou a desmoronar na Europa do Leste e a Ucrânia declarou independência, em 24 de agosto de 1991, o país ficou com uma herança pesadíssima: mísseis balísticos intercontinentais e bombardeiros estratégicos equipados com 1 800 ogivas nucleares, um terço de todo o arsenal atômico soviético.

Três anos depois, com o país na lona, foi assinado o Memorando de Budapeste, tornando a Ucrânia um dos raros casos de desarmamento nuclear completo. O equipamento bélico foi transferido para a Rússia, para ser desativado.

Em troca, os Estados Unidos – e também a Rússia – assumiram compromissos com a segurança da Ucrânia.

Adivinhem quem não cumpriu sua parte.

É claro que até hoje existem ucranianos para os quais foi um erro estratégico entregar o arsenal nuclear, pois ele protegeria o país exatamente do que está acontecendo agora: uma intervenção russa. O próprio presidente ucraniano, Volodimir Zelenski lamentou recentemente a concessão. Putin chegou a insinuar, como um vilão dos velhos filmes de James Bond, que a Ucrânia está interessada em voltar a ter “armas de destruição em massa”.

Nord Stream 2

O grande gasoduto que passa pelo Mar do Norte e liga a Rússia diretamente à Alemanha é uma das chaves para o conflito atual.

Quem sofre mais se o gás não chegar, a Rússia, que o fornece, ou os países europeus que ficarão desabastecidos?

Com muito esforço, os Estados Unidos arrancaram da Alemanha a suspensão da certificação do Nord Stream 2, que está pronto para entrar em operação desde setembro.

“Bem-vindo ao novo mundo em que os europeus logo terão que pagar dois mil euros por mil metros cúbicos de gás”, ironizou Dmitri Medvedev, que foi um presidente marionete, quando Putin ainda não havia garantido a reeleição ad aeternum.

Hoje Medvedev está do tamanho que merece: é vice-presidente do Conselho de Segurança. Mas sua ironia é baseada em fatos.

O gás russo abastece 100% da Eslováquia e da Estônia. Com todo seu pavor a interferências russas, a Polônia depende dele em quase 60%, um pouco acima da Alemanha. Ao todo, a Rússia cobre 40% do consumo europeu.

Noruega, Catar e Argélia, os outros principais fornecedores, não têm nem condições físicas de suprir o buraco que um desabastecimento russo deixaria.

Energia é poder e Putin certamente se preparou para a crise muito mais do que seus antagonistas.

Soberania

“A Ucrânia nem sequer é um país”, disse Putin certa vez a George Bush filho.

É obviamente uma afronta ao direito dos povos de se organizarem livremente, a base mais elementar das instituições internacionais que consta da carta da ONU e das Atas de Helsinque, o descongelamento de tensões e declarações de princípios básicos de não intervenção, assinadas por Estados e União Soviética em 1975.

Obviamente, a Ucrânia tem uma história complexa, misturada com a da Rússia, com grandes movimentações populacionais nos dois sentidos, espontâneas ou forçadas.

Mas o fato de que tenha se tornado independente somente em 1991 não pode ser usado para destroçar seu direito a ser um país soberano, mesmo com a argumentação pretensamente histórica de Putin.

“Vamos começar com o fato de que a Ucrânia foi inteiramente criada pela Rússia, mais exatamente pela Rússia bolchevique, comunista. Este processo começou imediatamente depois de 1917”, disse ele no discurso da segunda-feira.

Lênin foi “o autor e criador” da Ucrânia, um erro na visão dele. Stálin também errou ao “dar para a Ucrânia alguns territórios que pertenciam previamente a Polônia, Romênia e Hungria”.

“Não é mais importante definir exatamente qual era a ideia dos líderes bolcheviques que estavam cortando o país em pedaços. Podemos discordar sobre pequenos detalhes, contexto e lógica de certas decisões. Mas um fato é perfeitamente claro: a Rússia foi roubada”.

Este tipo de narrativa pervertida, dirigida principalmente ao público interno, justifica todo tipo de abuso.

Revista Veja