sexta-feira, fevereiro 25, 2022

É preciso investigar intervenção de Flávio na Receita - Editorial




É grave a revelação de que pelo menos cinco servidores da Receita Federal foram mobilizados durante quatro meses para apurar se os dados fiscais do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) haviam sido acessados de modo irregular e depois repassados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), dando início ao caso que ficou conhecido como Escândalo das “Rachadinhas”. De acordo com as denúncias, o ex-PM Fabrício Queiroz comandava um esquema de desvio de parcela dos salários dos funcionários do gabinete de Flávio, quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro.

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a mobilização do aparelho do Estado em benefício do filho Zero Um aconteceu depois de uma reunião, revelada pela revista ÉPOCA, envolvendo o presidente Jair Bolsonaro, o chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, e advogados que representavam Flávio e haviam encaminhado o pedido de investigação ao então secretário especial da Receita, José Barroso Tostes Neto.

A própria Receita já reconheceu que Tostes Neto se reuniu três vezes com Flávio em 2020, uma delas na casa dele, no dia 17 de setembro, quando o caso das “rachadinhas” foi tema de discussão. A mobilização dos funcionários do Fisco para tratar dos interesses do filho do presidente ocorreu, segundo os documentos revelados, poucas semanas depois, no dia 23 de outubro, por ordem de Tostes Neto.

Tivesse havido acesso irregular aos dados fiscais do senador, evidentemente seria uma violação inaceitável dos seus direitos. Mas a investigação que a Receita promoveu especialmente para verificar essa suspeita comprovou que nada disso aconteceu.

A apuração demonstrou que não há como acessar os sistemas da Receita sem deixar rastros, ao contrário do que insinuava a defesa de Flávio. Também não encontrou nenhum acesso que fugisse à normalidade, novamente em desafio a exemplos hipotéticos trazidos pelos advogados nos documentos em que exigiam a investigação. Todas as acusações contra o Fisco se revelaram um espantalho para tentar desviar as investigações das “rachadinhas” do foco principal. Ao final, restou claro o que todos já sabiam: as informações que deram origem às denúncias de “rachadinha” surgiram nos relatórios de rotina que o Coaf prepara para analisar transações financeiras suspeitas.

O que choca no episódio é a desfaçatez com que Flávio aparentemente usou de sua proximidade com o Planalto para tentar fazer prevalecer uma versão que o livrasse das denúncias. Bolsonaro decerto não é o primeiro presidente a usar a máquina do Estado para defender interesses seus e de seus familiares. Mas isso não alivia a situação. Trata-se de mais uma traição aos valores republicanos expressos na Constituição que ele jurou cumprir ao tomar posse. A Procuradoria-Geral da República tem o dever não apenas de levar adiante as acusações contra Flávio no caso das “rachadinhas” — que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tratou de esvaziar numa decisão questionável —, mas também de abrir uma nova investigação para apurar a intervenção dele na Receita.

O Globo