quinta-feira, fevereiro 03, 2022

Avanço chinês mostra disfunções do Mercosul - Editorial




A função de um bloco não é armar protecionismos indefensáveis

O fato de a China ter ultrapassado o Brasil em suas exportações para a Argentina diz muito sobre o mau estado do Mercosul e sobre a perda de competitividade das indústrias dos dois lados da fronteira - o contrário do que a criação de um bloco comercial na região se propôs. O poder de conquistar mercados do maior exportador do mundo, a China, é gigantesco, mas os desacertos políticos entre as duas maiores economias do bloco, Brasil e Argentina, facilitaram bastante o trabalho dos chineses.

Um dos objetivos de acordos comerciais como o do Mercosul é unir as vantagens comparativas de seus membros, propiciar o pleno usufruto delas, buscar novas complementaridades e oportunidades de especialização regional. Não foi o que aconteceu nos 30 anos de vida do Mercosul.

Em vez de consolidar e expandir vantagens dinâmicas existentes, as duas maiores economias do bloco se empenharam boa parte do tempo em defender suas indústrias e mercados internos, com maior ou menor grau de protecionismo ao longo do tempo. A atitude do Brasil, um dos países mais fechados ao comércio do mundo, foi mais passiva do que a da Argentina, envolta em crises permanentes para as quais busca refúgio em um nacionalismo obsoleto que não poupou os países do bloco.

Com o governo de Néstor Kirchner, primeiro, e Cristina Kirchner, depois, a Casa Rosada tomou todo tipo de medida para impedir o comércio com seu aliado formal do Mercosul, enquanto deixou o flanco aberto a competidores muito mais agressivos, como os chineses. A Argentina passou anos contendo burocraticamente as exportações brasileiras para seu mercado, por meio de licenças prévias de importação e acordos de “restrição voluntária”. Os livros-texto apontam que essas restrições podem provocar desvio de comércio. A China foi seu principal beneficiário.

Em 2009, por exemplo, quando o então presidente Lula começou a retaliar os argentinos com as mesmas medidas protecionistas que tomavam, a Argentina mudou regras de validação de certificados que beneficiavam os brinquedos brasileiros. A China fornecia 79% das importações argentinas desses produtos, mas o governo Kirchner resolveu implicar com seu parceiro comercial, o Brasil, cujas vendas somavam 2,2% das importações. Desde 2005 o Brasil, com as restrições, perde na venda de têxteis enquanto os chineses crescem. A China passou à frente na venda de calçados no fim da década de 2000, eles também sujeitos a licenças prévias. Em 2009, a China recebeu 60% dessas licenças de importação para esse bem, e as empresas brasileiras, 30%.

Que isso tenha sido feito por tanto tempo, por pura decisão unilateral, com o principal parceiro do Mercosul, explica muito sobre por que o bloco mal progrediu após seu forte arranque inicial. O que se viu foi a proteção da baixa produtividade da indústria argentina contra a congênere brasileira, de produtividade um pouco maior, em produtos em que os chineses são melhores que ambos. A falta de visão estratégica, a disparidade de políticas macroeconômicas, as barreiras à livre movimentação de mão de obra e outros objetivos inconclusos do acordo comercial trouxeram perda permanente de mercados para os dois países sem permitir que empresas concorrentes de outros países se instalassem domesticamente para produzir.

A função de um bloco não é armar protecionismos indefensáveis. Em vários setores a China é imbatível. Tarifas existem para equilibrar provisoriamente o jogo em segmentos industriais para os quais há chances de competição a longo prazo - não são todos e é preciso definir quais são estratégicos. Mesmo na indústria automotiva, o coração das trocas bilaterais, a enorme proteção tarifária afastou os chineses sem que tenha havido saltos significativos de tecnologia e competitividade. As exportações de veículos não são o forte do Brasil e da Argentina para fora do bloco.

O resultado é que a China, que ninguém pode controlar, vendeu 21,4% de tudo o que a Argentina importou em 2021, e o Brasil, com o qual a Argentina tem um tratado e é obrigado a negociar, exportou 19,6%. Em 2010, as fatias eram respectivamente de 14,3% e 30%.

Os chineses subiram os degraus de sofisticação tecnológica. Primeiro derrubaram seus competidores nas indústrias tradicionais, como têxteis e calçados, e depois naquelas em que países como Argentina e Brasil poderiam avançar, e não o fizeram. O progresso chinês no Mercosul explica parte da prostração da indústria nas maiores economias da América do Sul.

Valor Econômico