segunda-feira, fevereiro 28, 2022

A Guerra de Putin e a política nos EUA




Crise na Ucrânia altera debate sobre clima, energia importada e ameaça estrangeira

Por Vinicius Torres Freire

Joe Biden preocupa-se com quantas mulheres vai nomear para o Banco Central. Seu Partido Democrata se ocupa de quais pronomes pessoais usar com pessoas LGBTQ+ —ou não. Quer cortar a despesa militar e fazer uma transição para a "economia verde" que sujeita o país a caprichos de estrangeiros, de quem depende para ter energia bastante ou a preço razoável.

A direita tradicional americana cai assim de pau em Biden, acusado também de molenga com Vladimir Putin. Sim, a direita tradicional e letrada do Partido Republicano. Os trumpistas vão além. Elogiam Putin e querem deixar a Rússia para lá, pois o problema seria a China.

Percebe-se por que Jair Bolsonaro lambe as botas de Putin: porque pegou gosto lambendo a sola de Trump.

A direita tradicional e parte dos democratas querem que Biden arranque o couro de Putin até para mostrar à China que não está para brincadeira e que não vai tolerar nem sinal de ucranização de Taiwan. Querem também que o governo derrube restrições ambientais à produção de petróleo e gás, de modo a tornar os EUA independente e capaz de vender a energia de que seus aliados precisam, dane-se a transição verde. Enfim, diz que os americanos devem se preparar para uma nova Guerra Fria, o que implica ter ideias diferentes sobre autossuficiência econômica em itens estratégicos, alterar a política de alianças regionais (exigindo mais fidelidade) e mudar suas bases militares para perto das fronteiras inimigas, da Rússia em particular.

Biden deveria começar essa mudança de rota já no discurso anual do Estado da União, na próxima terça-feira (1º), dizem esses críticos. Não deve mudar, mas a guerra de Putin pode trincar ainda mais a ideia de globalização, rasgar a fantasia de cooperação internacional e favorecer os críticos da "transição verde"

A epidemia sugeriu que é um risco depender do estrangeiro para se abastecer de vários produtos e insumos, não apenas médicos. Mostrou que a vigilância sanitária mundial é um fracasso e que, quando o vírus bate à porta, é cada um por si. Além disso, a guerra e o risco da dependência de combustíveis importados reavivam discussões sobre energia limpa e ritmo da transição verde. No mínimo, o establishment europeu vai pensar em como abrir mão de fontes mais sujas de energia sem depender do gás russo.

Esse faniquito da direita pode parecer disparate oportunista, pois se trata de problemas de escala diferente: uma crise grave, mas circunstancial (guerra), e uma crise já crônica (mudança climática) que pode se tornar apocalíptica —tais crises seriam motivos para acelerar a transição.

Resta convencer os eleitores. Todos são esfolados pela crise mundial de energia. Estão cada vez mais abertos a ideias xenófobas ou isolacionistas. Essa mentalidade é alimentada, por exemplo, pela propaganda do "vírus importado", pelo medo de gente importada (imigrantes), pela noção de que o mundo lá fora é um lugar de perigos ou onde se desperdiça um dinheiro que deveria ser gasto em problemas nacionais. A circunstância da guerra na Ucrânia tende a agravar essas reações e reacionarismos.

No entanto, circunstâncias assim ruins vêm se encaixando umas nas outras pelo menos desde o início do século: revoltas contra a desigualdade, crises de refugiados (gente em fuga da fome e do horror), crises financeiras desastrosas, tumulto climático, peste e agora guerra. Cada rodada de problema circunstancial entrincheira a reação obscurantista às crises e deixa intocados os responsáveis pelas desgraças.

O longo prazo é feito de curtos prazos, de circunstâncias, para dizer a coisa com sarcasmo sinistro.

Folha de São Paulo