terça-feira, janeiro 04, 2022

Por que vacinados ainda podem pegar covid (e isso não é falha do imunizante)




Os imunizantes contra a covid-19 continuam a funcionar para aquilo que eles foram desenvolvidos: a prevenção de casos mais graves da doença, que causam hospitalização e morte.

Por André Biernath, em São Paulo

O cantor Caetano Veloso, o ex-jogador Ronaldo Fenômeno, a apresentadora Maísa, o ator Marcelo Serrado, o influenciador Casimiro Miguel… Várias personalidades divulgaram que receberam um diagnóstico positivo para covid-19 nos últimos dias.

A maioria absoluta já estava vacinada com duas ou três doses da vacina e alguns estão infectados pela segunda vez.

Os anúncios serviram de combustível para a criação (ou a reciclagem) de notícias falsas, que acusam os imunizantes de não funcionarem como o esperado.

As notícias também levantaram algumas dúvidas na cabeça das pessoas: se as vacinas são efetivas, como é que tanta gente pegou covid?

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que os dados oficiais e os estudos científicos são bem claros e oferecem respostas para esse e outros questionamentos. Mesmo com o avanço da variante ômicron, os imunizantes contra a covid-19 continuam a funcionar para aquilo que eles foram desenvolvidos: a prevenção de casos mais graves da doença, que causam hospitalização e morte.

Entenda a seguir como cientistas, médicos e instituições de saúde seguem confiando no poderio das vacinas testadas e aprovadas em várias partes do mundo — e como elas estão ajudando a conter a pandemia.

A falsa controvérsia ganha terreno

Diante das notícias das celebridades infectadas e dos recordes diários de novos casos de covid-19 em países como Estados Unidos, França e Reino Unido, a efetividade das vacinas voltou a virar motivo de discussão nas redes sociais.

No Brasil, uma das postagens que geraram mais polêmica foi um tuíte da advogada Janaina Paschoal, deputada estadual em São Paulo pelo Partido Social Liberal (PSL).

Ela escreveu: "Vivemos um momento tão intrigante, que pessoas vacinadas, com todas as doses, pegam covid-19 e recomendam a vacinação. Parece piada. Ninguém acha, no mínimo, curioso?"

Até o fechamento desta reportagem, a publicação já contava com mais de 14 mil curtidas e 6 mil compartilhamentos.

'A deputada Janaina Paschoal disse que já incentivou a vacinação em vários momentos'

A BBC News Brasil entrou em contato com a deputada Janaina Paschoal, que enviou uma nota de esclarecimentos a respeito da polêmica após a postagem no Twitter:

"Nunca neguei a doença, sempre estimulei comportamentos responsáveis e, em vários momentos, incentivei a vacinação. Não obstante, penso que a dinâmica preponderante no Brasil não é saudável", escreve.

A deputada acredita que "existe uma vedação em se debater a eficácia e os efeitos adversos das vacinas".

"Querem impor a vacinação, mediante a vedação de direitos básicos, como saúde, educação e trabalho, como se os vacinados não pegassem ou não transmitissem a covid. Não sou contrária à vacinação. Sou contrária à imposição e à obstrução do debate", finalizou.

Sobre os eventos adversos das vacinas mencionados por Paschoal, as agências regulatórias e diversas entidades científicas nacionais e internacionais são unânimes em afirmar que as doses contra a covid são seguras para pessoas com mais de 5 anos.

Até o momento, os principais efeitos colaterais observados são leves e passam naturalmente após alguns dias. Entre os principais incômodos listados, destacam-se: dor e vermelhidão no local da picada, febre, dor de cabeça, cansaço, dor muscular, calafrios e náuseas.

Os eventos mais graves, como anafilaxia, trombose, pericardite e miocardite (inflamações no coração), são consideradas raros pelas autoridades — e os benefícios de tomar as doses superam, de longe, os riscos observados, asseguram as agências.

Já a respeito da discussão sobre a eficácia e o fato de indivíduos vacinados pegarem e transmitirem o coronavírus, o pediatra e infectologista Renato Kfouri esclarece que a primeira leva de vacinas contra a covid-19, da qual fazem parte CoronaVac e os produtos desenvolvidos por Pfizer, AstraZeneca, Janssen, entre outras, tem como objetivo principal reduzir o risco desenvolver as formas mais graves da doença, que estão relacionados a hospitalizações e mortes.

"As vacinas protegem muito melhor contra as formas mais graves do que contra as formas moderadas, leves ou assintomáticas da covid. Quanto mais grave o desfecho, maior a eficácia delas", resume Renato Kfouri, que é diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

A meta principal desses imunizantes, portanto, nunca foi barrar a infecção em si, mas tornar essa invasão do coronavírus menos danosa ao organismo.

Esse mesmo racional se aplica à vacina contra a gripe, disponível há décadas. A dose, oferecida todos os anos, não previne necessariamente a infecção pelo vírus influenza, mas evita as complicações frequentes nos grupos mais vulneráveis, como crianças, gestantes e idosos.

Analisando o cenário mais amplo, essa proteção contra as formas mais severas têm um impacto direto em todo o sistema de saúde: diminuir a gravidade das infecções respiratórias é sinônimo de prontos-socorros menos lotados, maior disponibilidade de leitos de enfermaria ou UTI e, claro, mais tempo para a equipe de saúde tratar os pacientes de forma adequada.

E os dados mostram que as vacinas estão cumprindo muito bem esse papel: de acordo com o Fundo Commonwealth, a aplicação das doses contra o coronavírus evitou, até novembro de 2021, um total de 1,1 milhão de mortes e 10,3 milhões de hospitalizações só nos Estados Unidos.

Já o Centro de Controle e Prevenção de Doenças da Europa (ECDC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) calculam que 470 mil indivíduos com mais de 60 anos tiveram as vidas salvas em 33 países do continente desde que a vacinação contra a covid começou por lá.

O que explica a situação atual?

Mesmo diante das informações sobre o papel principal dos imunizantes, é inegável que a frequência de reinfecções ou de diagnósticos positivos entre vacinados aumentou nos últimos tempos. E isso pode ser explicado por três fatores.

O primeiro deles é simples: acabamos de sair do período de Natal e Réveillon, em que as pessoas se aglomeram e fazem festas. Isso, por si só, já aumenta o risco de transmissão do coronavírus.

Segundo, passado praticamente um ano desde que as doses começaram a ficar disponíveis em algumas partes do mundo (inclusive no Brasil), os especialistas aprenderam que a imunidade contra a covid pós-vacinação não dura para sempre.

"Com o passar do tempo, vimos que o nível de proteção cai. Essa queda vai ser maior ou menor dependendo do tipo de vacina e da idade de cada indivíduo", explica Kfouri.

"Isso deixou evidente a necessidade da aplicação de uma terceira dose, primeiro para os idosos e imunossuprimidos, depois para toda a população adulta", complementa o médico.

'Vacinas protegem (e continuam a proteger) contra as formas mais graves de covid, relacionadas à hospitalização e morte'

O terceiro fator tem a ver com a chegada da variante ômicron, que é mais transmissível e tem capacidade de "driblar" a imunidade obtida com as vacinas ou com um quadro prévio de covid.

"Diante disso, a infecção em indivíduos vacinados deve ser vista como algo absolutamente comum e vamos precisar aprender a conviver com essa situação", acredita Kfouri.

"Felizmente, esse aumento recente de casos de covid tem se traduzido numa menor taxa de hospitalização e mortes, especialmente entre indivíduos que já foram vacinados", observa o diretor da SBIm.

"Ou seja: a vacina continua protegendo contra as formas mais graves, como esperado", conclui.

Os gráficos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) mostram claramente esse efeito das vacinas na prática.

A taxa de hospitalizações por covid-19 entre os não vacinados é muito superior quando comparada aos indivíduos que haviam recebido suas doses até novembro.

Ainda de acordo com o CDC, algo parecido acontece com o risco de infecção e de morte pelo coronavírus.

Até outubro, indivíduos não vacinados (linha preta) tinham um risco 10 vezes maior de testar positivo e um risco 20 vezes superior de morrer por covid na comparação com quem já havia recebido a dose de reforço (linha azul escuro).

Mas o que aconteceu mais recentemente, a partir de dezembro, com a chegada da variante ômicron? Mais atualizados, os gráficos do sistema de saúde de Nova York, também nos EUA, mostram uma diferença gritante.

A partir do início de dezembro, a curva de casos, hospitalizações e mortes na cidade sobe vertiginosamente entre os não vacinados (linha roxa), e se mantém estável, ou com um ligeiro aumento, entre quem tomou as doses (linha laranja), como você pode conferir nas três imagens a seguir:

Num relatório recente, a Agência de Segurança em Saúde do Reino Unido chegou a uma conclusão parecida.

Uma das análises incluída no artigo foi feita na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e mostra que, caso o indivíduo seja infectado com a ômicron, o risco de hospitalização é 81% menor se ele tiver tomado as três doses do imunizante.

Já uma segunda pesquisa, feita pela própria agência, demonstra que as três aplicações de vacinas têm uma efetividade de 88%, embora ainda não se saiba quanto tempo dura essa proteção e se haverá necessidade de reforços nos próximos meses.

Infelizmente, não existem dados semelhantes sobre a realidade brasileira — os ataques aos sistemas de informática do Ministério da Saúde no início de dezembro ainda não foram 100% resolvidos e impossibilitam o acesso aos números de hospitalizações e mortes por infecções respiratórias das últimas semanas.

Para Kfouri, todas essas evidências só reforçam a importância da vacinação num contexto de circulação da ômicron e aumento de casos.

"É absolutamente errado pensar que não adianta tomar as doses porque todos vão ficar doentes mesmo assim. A vacina consegue transformar a covid numa enfermidade mais simples, que pode ser tratada em casa na maioria das vezes", afirma.

"Só vamos sair da pandemia com uma alta cobertura vacinal da população, incluindo as crianças, e o respeito aos cuidados básicos, como o uso de máscaras, a prevenção de aglomerações e a lavagem das mãos", completa o especialista.

BBC Brasil