domingo, janeiro 30, 2022

Os Educadordes do Povo

 




Há aqui elementos de uma ética puritana que, num contexto de laicização, se transpõem para a nova religião civil: a obsessão com uma culpa que decorre do que somos, não do que fazemos. 

Por Teresa Nogueira Pinto (foto)

No universo anglo-saxónico, alguns académicos-ativistas, fascinados pelo autoritarismo e cada vez mais divorciados da realidade, têm vindo a tentar – com cada vez mais sucesso – transformar as universidades num projeto de poder que compromete a liberdade de investigação, de pensamento e de expressão. Os novos educadores do povo, como os seus antecessores, estão dispostos a eliminar tudo o que se coloque no caminho da revolução, incluindo o debate, a evidência, a liberdade ou o bom senso. Mas porque a natureza deste projeto é totalitária, e o que acontece na academia nem sempre fica na academia, existem repercussões políticas.

O “grande esquema”

Em 2017, Peter Boghossian submeteu com sucesso para a revista científica Cogent Social Sciences um artigo com o título “O Pénis Conceptual como Construção Social” onde argumentava, escrevendo sob pseudónimo, que o pénis deveria ser entendido não como órgão anatómico, mas como construção social conceptualmente responsável, entre outras coisas, pelas alterações climáticas.

Mais tarde, Helen Pluckrose e James Lindsay juntaram-se a Boghossian com o objetivo de testar uma hipótese: se artigos usando a metodologia e a linguagem da teoria crítica e do interseccionismo, ainda que defendendo teses absurdas ou imorais, seriam publicados em revistas científicas. Em menos de dois anos, sete foram publicados.

De entre os artigos publicados está um intitulado “Going in Through the Back Door: Challenging Straight Male Homohysteria, Transhysteria, and Transphobia Through Receptive Penetrative Sex Toy”. Como o título sugere, o argumento é o de que a auto penetração anal poderia ajudar os homens a tornarem-se menos homofóbicos e transfóbicos e reduzir a sua masculinidade tóxica. Outro artigo intitulava-se “Human reactions to rape culture and queer performativity at urban dog parks in Portland, Oregon” e defendia a tese de que os parques para cães eram espaços onde dominava uma cultura da violação canina. Num artigo sob o título “Our Struggle Is My Struggle: Solidarity Feminism as an Intersectional Reply to Neoliberal and Choice Feminism”, os autores incluíram excertos plagiados de Mein Kampf, em que substituíam referências ao nacional-socialismo por referências ao feminismo.

A aceitação destes artigos expõe um problema que, como nota Boghossian, é de natureza não apenas epistemológica, mas também política, ideológica e ética.

Mentes fechadas

Em “The Closing of the American Mind” (1987), Alan Bloom defende que, na universidade, o progressismo acabou por resultar num fechamento da mente, alimentando uma demagogia radical. Bloom, um proscrito à luz da nova ortodoxia, estava certo.

Quase três décadas depois, Greg Lukianoff e Jonathan Haidt publicam “The Coddling of the American Mind”. A tese é a de que a combinação entre boas intenções e más ideias está a condenar uma geração inteira ao fracasso, mediante a cristalização de três inverdades perigosas (e, diga-se, contraintuitivas): que o que não nos mata nos torna mais fracos; que devemos sempre seguir as nossas emoções, e que a vida é uma batalha entre os bons e os maus.

Na origem destas ideias está uma obsessão com a segurança, que começa desde o nascimento. Num tempo e espaço onde as crianças gozam de uma segurança sem precedentes, surge uma geração de pais helicóptero, obcecados em proteger as criancinhas de qualquer risco ou contrariedade e transformando-as em adultos mais frágeis. A obsessão começa pela segurança física, mas estende-se a um vago e subjetivo conceito de segurança emocional que se prolonga até à idade adulta, substituindo a ética das intenções por uma ética das perceções (os meus sentimentos determinam o que é uma ofensa).

Tudo isto resulta num processo de infantilização. Há uma continuidade entre banir histórias infantis como “O Tigre que veio tomar chá” porque reforçam estereótipos e promovem a desigualdade e violência de género entre os mais pequenos, querer cancelar o clássico Baby, It’s Cold Outside ou, em nome de um absurdo conceito de equidade, isentar os finalistas do liceu no Oregon de demostrar que conseguem ler, escrever ou fazer contas. O fechamento das mentes vem acompanhado de um abaixar do olhar.

Laboratórios do autoritarismo

Lukianoff e Haidt contam que o conceito de “espaço seguro” ganhou notoriedade com um artigo do New York Times, em 2015, relatando a experiência de alunos da universidade de Brown que, confrontados com o doloroso facto de existirem opiniões e teses dissonantes, se refugiaram em salas com bolachas, plasticinas, música relaxante, livros de colorir e profissionais de saúde mental. (Como se o conhecimento não resultasse da dúvida e do contraditório e a vida não fosse, também, uma sucessão de riscos e contrariedades).

A nova ortodoxia tem mecanismos peculiares. A universidade de Cambridge criou, em nome de um ambiente seguro e inclusivo, uma página de “report + support”, onde os alunos poderiam fazer denuncias anónimas sempre que se sentissem vítimas de uma micro agressão, o que podia incluir, na versão inicial, um franzir de sobrolho. Outro mecanismo são as listas progressivas, inspiradas na ideia de tolerância repressiva de Marcuse. Uma vez que todas as relações são entre opressor e oprimido, a tolerância serve apenas para consolidar o domínio dos primeiros sobre os segundos. Por isso numa lista progressiva as pessoas falam por ordem, estabelecida mediante critérios de identidade. Esta absolutização da dicotomia entre opressor e oprimido, definida por critérios identitários, assenta na mesma lógica da inimizade objetiva de que fala Hannah Arendt, em que o inimigo – objetivo e total – é definido não por aquilo que alguém faz ou pensa, mas por aquilo que é.

Os mortos não escapam à vaga de destruição não criativa. Na Universidade de Columbia, os alunos exigem “trigger alerts” antes de serem expostos às micro agressões perpetradas ao longo dos séculos por Ovídio, Dante ou Homero. Já entre os vivos, a lista de cancelados caracteriza-se pela diversidade, incluindo Condoleezza Rice, Ayaan Hirsi Ali, Christine Lagarde (uma “imperialista corrupta”) ou o geofísico Dorian Abbott, acusado de defender processos de seleção assentes no mérito e não na identidade.

Este não é um fenómeno confinado às humanidades. Que o diga o professor da Universidade de Medicina da Califórnia que teve de pedir desculpas por utilizar o termo “mulheres grávidas”. Na Scientific American decreta-se que os Jedi e o termo “supremacia quântica” são problemáticos.

Novos puritanos

Não é por acaso que este movimento floresce na América, onde um passado muito recente de segregação convive com uma memória coletiva que não reconhece um passado autoritário, e a ideia de uma superpotência convive (ou convivia) com mitos fundacionais frágeis.

Há também aqui elementos de uma ética puritana que, num contexto de laicização, se transpõem para a nova religião civil: a obsessão com uma culpa que decorre do que somos, não do que fazemos; o pecado original sob a forma do privilégio, o impulso de fazer tábua rasa. O pecado pode vir na forma de ação ou omissão, uma vez que toda a ação ou é forma de resistência ou de opressão. Aos culpados exigem-se exercícios de retratação e expiação pública. Todos devem estar vigilantes, encoraja-se a denúncia e a autodenúncia do que é problemático. Há hereges, excomungados e alguns reabilitados.

Como Saturno, o movimento acaba por devorar os seus próprios filhos. De acordo com um relatório da Foundation for Individual Rights in Education, entre 2015 e 2020 houve 426 pedidos de investigação, demissões e afastamentos nas universidades americanas. A maioria, segundo os autores, são académicos progressistas acusados por colegas e alunos mais progressistas. Já um estudo do Center for the Study of Partisanship and Ideology concluiu que 73 por cento dos estudantes conservadores não exprimem as suas opiniões políticas por medo de retaliações por parte dos professores ou dos colegas.

Este ativismo que, ao abrigo das mais nobres intenções, transforma as universidades num projeto de poder (ideológico e autoritário) assume-se sem cerimónia. Levado às suas últimas consequências, a ideia destes educadores do povo é destruir a família, o capitalismo e, e com ele a civilização ocidental (conceito também problemático) e as ilusões igualdade, justiça e liberdade sobre as quais assenta.

Para lá da esquerda e da direita

Chegados aqui perguntarão: qual é o problema? São dois. O primeiro é que nem todas estas originalidades que se passam na academia ficam na academia. O segundo é que, ao abrigo das melhores intenções, este movimento impõe princípios que são incompatíveis com a democracia liberal: a primazia da identidade e da estrutura sobre a agência, do dogmatismo sobre o pluralismo, a coletivização da culpa e da inocência e a exploração sistemática do ressentimento.

A inspiração teórica dos novos bolcheviques vem da esquerda, mas a boa notícia é que, mesmo entre a esquerda, continua a haver sempre alguém que resiste, sempre alguém que diz não. Mark Lilla, Bernie Sanders, Noam Chomsky, Margareth Atwood ou Gloria Steinem estão entre os que chamam a atenção para os riscos do conformismo ideológico, do clima de intolerância, do dogmatismo e coerção que podem resultar desta obsessão identitária. Não deixa de ser sintomática a necessidade de evocar estes nomes, como se a única posição legítima a partir da qual se pode alertar para estes delírios autoritários fosse a da esquerda progressista.

A resistência vem também sob diferentes formas. Pelo humor, como a hilariante ativista interseccional Titania McGrath (com uma nota trágica, que é a quantidade de gente que a levou a sério); por testemunhos como o de Vivek Ramaswamy que explica as contradições do corporativismo woke; pelos esforços dos pais e mães que, no estado da Virginia, se mobilizaram contra a insanidade que tem tomado conta de algumas escolas, sendo por isso acusados de terrorismo doméstico.

E vem, também, da própria academia. Já em 2014, a Universidade de Chicago tornou público o seu compromisso com a liberdade de expressão e, desde então, mais de 70 universidades adotaram o mesmo princípio. Em outubro, uma coligação de resistentes e cancelados de diferentes orientações políticas (incluindo Boghossian, Kathleen Stock, Steven Pinker, Bari Weiss, Niall Ferguson e Larry Summers) anunciou a fundação da University of Austin Texas, dedicada “à procura, sem medo, da verdade”. Em quatro dias, receberam 3000 pedidos de informação por parte de académicos que desejam juntar-se ao projeto.

Como o príncipe Minsky, resta acreditar e esperar que, no meio da insanidade, o mundo será salvo pela beleza. E, com ele, a academia. Pela beleza, o bom senso e algum sentido de humor.

Observador (PT)