segunda-feira, janeiro 31, 2022

Jornalismo sobre preconceito racial e desigualdade social ignora uma rica diversidade ideológica




Por Leandro Narloch (foto)

Discriminação e desigualdade racial e de gênero são problemas complexos. Por “complexos”, entende-se que têm causas de difícil diagnóstico e que as propostas para solucioná-los ainda estão em debate. Infelizmente não sabemos muito bem quais ações funcionam, se pioram o problema em vez de resolvê-lo, ou quais têm custo de oportunidade maior que o benefício.

Tamanha dificuldade exige que a roda de conjecturas e refutações da ciência funcione. Hipóteses das mais diversas precisam ser apresentadas, testadas e discutidas. A imprensa ajuda, se comunicar essas dúvidas e complexidade ao leitor, de modo que a sociedade consiga selecionar os melhores diagnósticos e propostas.

PROBLEMAS COMPLEXOS – No entanto, boa parte dos acadêmicos, ativistas e jornalistas que tratam do tema se comporta como se estivessem diante de problemas simples com soluções conhecidas. Tão certos de que estão certos, não se interessam por abordagens diferentes e muitas vezes reagem a elas com estridência.

No livro “Irreversible Damage”, de 2020, Abigail Shrier conta a história de centenas de jovens que se arrependeram de fazer bloqueio hormonal da puberdade ou cirurgias de redesignação sexual.

Alguns passaram por mais de cem cirurgias para corrigir as anteriores, outros processaram médicos e a rede pública de saúde por terem sido submetidos ao tratamento com hormônios.

O MESMO ALERTA – A sexóloga e neurocientista Debra Soh, autora do livro “The End of Gender”, também de 2020, e a jornalista Helen Joyce, editora da Economist e autora de “Trans: When Ideology Meets Reality” (2021), fazem o mesmo alerta.

Para as três autoras, a imensa maioria dos jovens que não se identificam com gêneros binários lida com a questão naturalmente até o fim da adolescência, quase sempre assumindo a homossexualidade. Sem precisar de intervenções médicas que, segundo elas, não melhoram o bem-estar psicológico dos jovens e com frequência causam danos irreversíveis.

Num estudo de 2013, a psicóloga Nadia Bashir concluiu que até mesmo pessoas favoráveis a mudanças sociais se recusam a concordar com ativistas quando os enxergam como beligerantes e excêntricos.

REAÇÃO CONTRÁRIA – O radicalismo e a intolerância na defesa de uma causa prejudicariam a própria causa, ao reduzir o apoio da sociedade. Eli Vieira, biólogo e homossexual, acredita que esse fenômeno ajuda a explicar por que o apoio ao casamento gay parou de aumentar e até diminuiu no Brasil.

Uma pesquisa do PoderData concluiu que, em apenas um ano, de 2021 para 2022, a parcela de brasileiros favoráveis ao casamento gay caiu de 51% para 45%, enquanto os que se opõem subiram de 33% para 39%.

Para o biólogo, o movimento LGBT, que antes transmitia a imagem de celebrar a alegria, a tolerância, passou a ser visto como intolerante e autoritário.

COMO UMA SEITA – John McWhorter, linguista, negro, professor da Universidade Columbia e colunista do New York Times, publicou meses atrás o livro “Woke Racism”. Sua ideia central é que a atual onda antirracista, diferente das duas primeiras, que lutavam de forma concreta por direitos civis, é uma seita, uma religião secular.

Praticada principalmente por brancos ricos, urbanos e escolarizados, essa religião teria seus dogmas (a ideia do racismo estrutural), tabus (o racismo reverso) e uma noção de pecado original (a “branquitude”; o livro “White Fragility” é um dos principais alvos de McWhorter).

Também contaria com perseguições e apedrejamentos de hereges (os que ousam contestar o dogma), confessionários (brancos admitindo que são racistas em desconstrução), grupos santificados e, por fim, sacerdotes que passam a semana proferindo sermões moralizantes em eventos corporativos e universitários.

AUTOIMOLAÇÃO – Para McWhorter, o principal problema dessa religião é a crença, segundo ele equivocada, de que a melhora da situação dos negros depende de sessões de autoimolação em que brancos admitam sua culpa e seus privilégios ou repitam pela milionésima vez que a escravidão foi cruel.

Ele acredita que há ações mais frutíferas que merecem mais atenção, como a legalização das drogas e as reformas do sistema educacional.

Na mesma linha, Glenn Loury, primeiro negro a se tornar professor titular de economia em Harvard e hoje professor na Universidade Brown, rejeita a ideia de racismo estrutural como explicação para a disparidade econômica entre brancos e negros e acredita que a ênfase nesse conceito dificulta abordar questões para ele mais decisivas, como a estrutura familiar e a necessidade de inovação na rede pública de ensino.

É BOM DISCUTIR – Os autores acima estão certos? Talvez não. Talvez estejam bastante enganados. Mas certamente suas ideias merecem atenção. Merecem ser discutidas.

As pessoas que, como o leitor típico da Folha, se preocupam com a situação de transexuais, homossexuais e dos negros precisam conhecer e avaliar com serenidade o que afirmam autores como esses.

Os livros acima não são desconhecidos. Estão em listas de best-sellers, entraram na seleção de melhores livros do ano de grandes publicações internacionais, foram recomendados por intelectuais como Richard Dawkins e Steven Pinker. Então por que não ouvimos falar sobre eles na maioria dos jornais brasileiros? Por que se tem a impressão de que esses autores ou seus pontos de vista jamais aparecerão em entrevistas e textos produzidos pelas editorias de diversidade?

DIVERSIDADE IDEOLÓGICA – O jornalismo sobre diversidade serve para aprofundar o debate sobre como melhorar a situação de grupos discriminados. Por isso não deve se contentar com reproduzir ideias do PSOL sobre o tema. Deve explorar a fundo questionamentos e contradições. Não pode omitir dos leitores a rica diversidade ideológica sobre desigualdade, inclusão e discriminação.

O jornalismo que não tem rabo preso com ideologias deve admitir, por exemplo, que há diversas definições para o termo “racismo”.

Há a interpretação acadêmica recente, que o considera um sistema de poder, na qual não se encaixaria a ideia de racismo reverso. E há a concepção popular e usual de uma hostilidade baseada em motivos raciais. Ou, ainda, uma ideologia que prega a submissão racial.

MILITÂNCIA – O jornalista se comporta como um militante quando se agarra a só uma dessas definições e acusa de racismo quem adota outras. É fácil atribuir aos autores acima uma grave falha de caráter ou classificá-los como reacionários, transfóbicos, supremacistas ou arruaceiros.

O jornal não é obrigado a discutir teorias malucas vindas de guetos ideológicos, portanto é melhor tocar o barco e repetir as mesmas pautas politicamente corretas de sempre.

Ocorre que isso não condiz com a realidade. Alguns dos autores se consideram pessoas de esquerda, muitos escrevem para publicações de renome e dão aula em grandes universidades. Como qualquer pessoa de bem, querem viver num mundo com menos preconceito e mais direitos individuais.

HÁ TEMAS-TABUS – O comportamento de trincheira ajuda a explicar a falta de diversidade ideológica das reportagens. Se o jornalista escrever, por exemplo, sobre o sofrimento de jovens não binários depois de resultados desastrosos de cirurgias de redesignação sexual, dará munição ao inimigo da trincheira oposta (os reacionários bolsonaristas que gritam contra a ideologia de gênero).

Portanto é melhor manter o assunto debaixo do tapete, nem que isso deixe jovens e famílias menos informados.

É um comportamento partidário, de grupo, que não aprofunda o debate. Quem age dessa forma revela estar comprometido com dogmas identitários, e não com o bem-estar de indivíduos e grupos discriminados.

Folha de São Paulo / Tribuna da Internet