terça-feira, janeiro 04, 2022

‘Get back’, o enigma do retorno




Por Fernando Gabeira (foto)

Neste fim de ano, vi o documentário sobre os Beatles. Não me trouxe lembranças apenas dos intensos anos 60. A música que dá título ao documentário, “Get back”, teve muita importância há pouco mais de 40 anos, quando voltei do exílio. Eu a cantarolava, enquanto ajuntava algumas coisas e viajei para o Brasil.

Foi um momento decisivo. Às vezes, penso o que seria de mim se não voltasse. Viveria em Estocolmo, passaria as férias no sul de Portugal, nas Ilhas Gregas? Conheci gente que não voltou de seu exílio. No meu caso, seria uma escolha fatal.

Quando desembarquei, tinha uma máquina de escrever portátil vermelha, a Olivetti Lettera 22. Os funcionários da alfândega a olharam como se fosse um artefato tributável. A revolução digital ainda era uma névoa no horizonte.

Fervilhavam ideias ecológicas na cabeça, mas as mudanças climáticas e os eventos extremos não eram prioridade. Chamaria de poesia se um amigo baiano, como na semana passada, me dissesse que os peixes na pista de pouso pararam o trânsito no Aeroporto de Ilhéus.

Depois de quase meio século, nossa experiência democrática desembocou na ascensão de Bolsonaro. É um nó na garganta, mas não a ponto de desesperar. A democracia americana, mais sólida, acabou desembocando também na eleição de Trump.

Acontece. Alguns acham que a ascensão de Bolsonaro foi produto de um golpe, envolvendo os americanos, mercado financeiro, Faria Lima e o escambau.

Não quero polemizar. Acho que foi uma escolha popular equivocada, resultante dos erros na democratização. Minha interpretação no mínimo contém mais esperança: se tudo aconteceu como fruto dos nossos erros, é possível corrigi-los e evitar uma recaída. Americanos, mercado financeiro e Faria Lima são variáveis que não podemos modificar com facilidade.

A derrota torna atraente a teoria da conspiração. Até o Iluminismo foi interpretado como um complô, assim como a Revolução Francesa, a Independência Americana. Maçons, cavaleiros templários, diferentes vilões desfilaram pela História.

Bolsonaro impactou a luta contra a pandemia com seu negacionismo, muitas pessoas poderiam ter sido salvas. Estimulou a destruição da Amazônia, fez vista grossa para as queimadas que carbonizaram milhões de animais no Pantanal.

Foi um preço alto. A reconstrução não só do país, mas de seu projeto democrático, não será fácil. O Congresso se protege contra a renovação, garantindo uma grana alta para a reeleição de quem está lá. A campanha presidencial, pelo menos até o momento, passa ao largo de grandes temas como as mudanças climáticas e a revolução digital.

Mas o país não se resume a lacunas ou dados negativos. Trabalhadores na saúde, médicos e cientistas lutaram bravamente contra a pandemia. Comunidades indígenas se organizaram, alçaram sua voz; mesmo sufocada, a cultura seguiu produzindo. E houve solidariedade popular nos grandes desastres.

Bolsonaro está se isolando, mas não esteve nunca completamente só. Muitos se surpreenderam com o apoio popular que obteve em 2018 e logo depois da vitória. Poucos como eu se lembram da campanha do governo militar chamada “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A base conservadora sempre esteve aí, mas ela se dispersa quando a economia vai mal.

O Brasil precisa resgatar o processo democrático inaugurado pelas Diretas Já. Não se trata de uma volta de gente que partiu ao lugar a que pertenceu, como na canção dos Beatles. Mas de uma volta do lugar a seu próprio eixo.

Não enumerei aqui todos os obstáculos. Sei que pareço otimista ao dizer que é possível, apesar de tudo, pensar em reconstrução, evitando os descaminhos que nos trouxeram ao governo da extrema direita.

Quarenta anos depois, é preciso tentar de novo. Li uma frase de Mark Twain que talvez possa combater a ideia que temos da História como repetição: “Um gato que se senta num fogão quente nunca mais se sentará num fogão quente. Mas tampouco se sentará num fogão frio”.

Feliz Ano-Novo!

O Globo