Relatório revelando novas centenas de abusos de crianças por eclesiásticos na Alemanha confirma: se em alguma época a Igreja teve autoridade moral para se autopoliciar e punir, esse tempo já vai longe, opina Martin Gak.
Por Martin Gak*
Passaram-se 20 anos desde a reportagem do Boston Globe sobre abuso sexual infantil por membros da arquidiocese da Igreja católica da cidade americana de Boston. O tempo passado só ampliou o catálogo de horrores, com incontáveis casos de crianças vítimas de abuso pelas mãos da Igreja, por todo planeta.
Ano após ano, os números crescem, as vítimas seguem exigindo reparação, e gradativamente o público ficou anestesiado para a dimensão dos crimes. Esporadicamente, um novo relato, como o de 21 de janeiroúltimo, em Munique, irrompe à vista, lançando mais luz sobre a escala dos abusos.
O mais recente relatório acrescenta 500 vítimas da arquidiocese de Munique e Freising, entre 1945 e 2019, às mais de 3.500 em todo o país, reveladas em 2018, num explosivo relatório da Igreja católica.
Na Irlanda, 9 mil crianças, mortas em circunstâncias incertas nas famigeradas mother and baby homes, foram sepultadas em covas anônimas. O disseminado abuso infantil nos internatos do Canadá resultaram em pelo menos 6 mil mortos, muitos dos quais encontrados em sepulturas anônimas. Na França, em 2021 um estudo revelou que eclesiásticos abusaram de mais de 300 mil menores.
Conspiração do silêncio
Mas não é apenas o abuso em si que torna tão profundamente revoltante o histórico dos crimes sexuais contra menores de idade: com seu ritmo de reforma escandalosamente lento, a Igreja tem se demonstrado indisposta a convidar autoridades nacionais para investigarem.
Sua conspiração institucional de silêncio – auxiliada pelo sigilo da confissão, pela recusa de divulgar os dossiês dos casos ou de entregá-los às autoridades – parece agora confirmada pelas revelações do relatório de Munique e Freising, que envolveu o papa Bento 16, na época arcebispo Joseph Ratzinger, em quatro casos de pedofilia.
Altos membros da Igreja católica auxiliaram e acobertaram crimes contra crianças. O que se sabe agora é que o ex-pontífice sabia dos delitos, ajudou a transferência de pelo menos um culpado e depois forneceu informações falsas a respeito. O detalhe mais brutal de todos é que se tratava do mesmo homem que ficaria responsável pelo esclarecimento e reparação de crimes passados e prevenção de futuros.
Por mais pateticamente débil e inconsistente que tenha sido a reação das autoridades eclesiásticas, ela bem conseguiu prevenir uma intervenção política decidida por parte das autoridades nacionais de praticamente todo mundo. Diante desses repetidos contos de horror, a Igreja não tem sido capaz de apresentar mais do que expressões de contrição e alguns ajustes cosméticos de sua política interna.
Nesse contexto, cabe citar a recusa da Conferência Episcopal Espanhola, tanto de criar uma comissão para investigar casos de abuso sexual, quanto de permitir que instâncias externas se encarreguem. Em resposta a uma reportagem do jornal El País, detalhando pelo menos mil presumíveis ocorrências, o presidente do órgão, cardeal Juan José Omella, previsivelmente expressou "dor profunda" pelas vítimas, acrescentando que cada diocese seria responsável por "coletar as queixas e acompanhar as pessoas que sofreram".
Responsabilidade política negligenciada
Sem perceber, o cardeal Omella ilustra justamente a questão que as instituições públicas e estatais têm que encarar: os líderes eclesiásticos parecem crer que ainda possuem autoridade moral para se autopoliciar. De fato: na Espanha, agora, desafiando o peso político da Igreja católica no país e com respaldo do governista Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), um grupo de parlamentares apresentou um projeto para formação de uma comissão legislativa com a função de investigar crimes sexuais alegadamente cometidos por religiosos contra crianças.
O que a revelação de Munique mostra, é que tem sido uma falha instituições políticas, como governos, tribunais e polícia, permitirem que a Igreja investigue, julgue e, no fim das contas, puna a si mesma. De fato: não é só uma falha, mas também uma total subversão de qualquer noção de justiça num Estado democrático. Mais importante ainda: trata-se de uma gritante negligência dos deveres cívicos e políticos.
É vital não supormos que a questão em debate se refira apenas a crimes comitidos longo tempo atrás. Sem dúvida, justiça para vítimas passadas é importante. Porém o assunto mais premente é a situação nas igrejas, repartições e escolas neste momento mesmo. O tempo de confiar na boa vontade da Igreja em salvaguardar aqueles sob sua tutela, ou em fornecer uma avaliação sincera de suas próprias imperfeições, há muito se foi.
*Martin Gak é jornalista da DW
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