terça-feira, janeiro 04, 2022

Entrevista: Rubens Ricupero: “Bicentenário terá o signo do combate à desigualdade”




Novo titular da cátedra José Bonifácio, da USP, Ricupero vê esgotamento da Nova República no bicentenário da independência

Por Maria Cristina Fernandes 

Rubens Ricupero tinha saído de uma cirurgia cardíaca quando recebeu o convite do reitor da USP, Vahan Agopyan, para assumir a Cátedra José Bonifácio. Aceitá-la parecia uma temeridade para o embaixador de 84 anos. Depois de quatro décadas dedicadas à diplomacia, em que alcançou o posto de secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), e da passagem pelos ministérios do Meio Ambiente (1993) e da Fazenda (1994), parecia ter chegado a hora de se aposentar. Mas a tentação foi maior.

É a segunda vez que a cátedra, que já foi ocupada pelo ex-presidente do Chile Ricardo Lagos e pelo ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González, será entregue a um brasileiro. A primeira foi Nélida Piñon. Como a cátedra seria dedicada ao bicentenário da independência, a escolha levou em conta a lucidez com a qual Ricupero reflete sobre o Brasil contemporâneo à luz de sua história.

Redigiu as notas preparatórias à cátedra na crença de que o tempo raramente deixa intactas as atitudes em relação ao passado. Inspirou-se em Mário de Andrade, que, em 1922, foi capaz de extrair de uma realidade imperfeita os estímulos da transformação, e pôs-se a refletir sobre as razões pelas quais seria possível acreditar num país melhor no terceiro centenário.

E a primeira de suas reflexões é a de que, na comparação com a efeméride de cem anos atrás, o Brasil virou a chave de um país tão obcecado pela modernização que se achava capaz de remover mocambos com jatos d’água. Hoje, diz, há um consenso nacional, que só não invadiu o Palácio do Planalto, de que a verdadeira modernização do Brasil é o enfrentamento da desigualdade.

A segunda reflexão é a de que a convergência do bicentenário com a eleição de 2022 é uma coincidência infeliz e feliz. Infeliz por cair num momento de baixíssima autoestima nacional com a morte de mais de 619 mil brasileiros na pandemia e com a depressão da economia. E feliz porque as pessoas terão uma oportunidade de começar a mudança com seu voto.

“O sistema que foi estabelecido em 1988 com a Constituição está dando sinais de disfuncionalidade Ou se autorreforma ou será destruído como a monarquia, que não conseguiu se autorreformar”, diz Ricupero, entre outras muitas reflexões, na entrevista abaixo, concedida remotamente, por chamada de vídeo, da Praia do Forte, na Bahia, dias antes do Natal:

Valor: No texto sobre o quadro de Paul Klee, Angelus Novus, o filósofo Walter Benjamin diz que o anjo quer se deter sobre as ruínas do passado, mas é arrastado pela tempestade e a esta tempestade dá o nome de progresso. É assim que progredimos nesses 200 anos?

Rubens Ricupero: É uma coincidência ingrata que o Brasil complete 200 anos de independência no momento mais baixo de sua experiência de governo independente. É desejável que um aniversário desse tipo inspire um ânimo celebratório. No primeiro centenário, em 1922, também havia problemas, mas não tão graves quanto agora. Isso se pode ver objetivamente

Valor: De que maneira?

Ricupero: O resultado de uma recente pesquisa que mostrou que metade dos brasileiros, se pudesse, viveria fora do país. Nunca houve tantos brasileiros morando fora. A última estimativa do Itamaraty é 4,6 milhoes, o que mostra o nível da desesperança. Isso faz com que haja alguma semelhança entre nosso bicentenário e o da Argentina. Os argentinos têm dois bicentenários em 2010 e 2016 e, em ambos, se dizia que o país tinha estado melhor no primeiro bicentenário do que no segundo.

Valor: Mas no caso do Brasil, por mais deprimido que esteja o ânimo, dá pra dizer a mesma coisa?

Ricupero: Não exatamente. Mesmo no caso da Argentina não é verdade. É uma visão nostálgica e oligárquica do passado. Em 1922 o Brasil era um país atrasadíssimo em tudo, em educação, ciência, cultura. A primeira universidade foi criada em 1921, a Universidade do Brasil, porque queriam dar um título honoris causa ao rei Alberto, da Bélgica, que tinha sido convidado a visitar o Brasil. Em 1950 eram 44 mil brasileiros matriculados em universidades. Hoje são 8,6 milhões de universitários. O analfabetismo, que era de 80%, hoje é residual. Em 1900 a expectativa de vida não chegava a 40 anos. O barão do Rio Branco, que era o mais velho de oito irmãos, completou 50 anos como o único sobrevivente. No Rio, até a vacinação de Osvaldo Cruz, o número de óbitos era maior do que o de nascimentos. A cidade crescia pela imigração.

Valor: Nesses 200 anos, 66 foram vividos sob escravidão. Quais são suas marcas hoje comparativamente àqueles deixadas no centenário de 1922?

Ricupero: Em 1922 a preocupação era a de modernizar o país, fazer com que o país deixasse de ser atrasado, que se inserisse no avanço mundial. Hoje é a desigualdade. Naquele ano houve um inquérito com grandes intelectuais, coordenado por Vicente Licínio Cardoso, que era um engenheiro positivista que nasceu com a República em 1889 e se suicidou em 1931. Em 1922 ele pediu a intelectuais como Tristão de Athayde, Oliveira Viana, Gilberto Amado que escrevessem ensaios sobre o sentido dos 37 anos da República. Esses ensaios saíram no livro “À margem da história da República”. Quando se lê esses ensaios se percebe que a ideia da desigualdade, hoje é tão presente, é quase ausente nesse livro. A percepção da imensa maioria, que era marginalizada, quase não aparece na consciência das pessoas. A grande preocupação era com a modernização da sociedade, isso passa pela Semana de Arte Moderna, pelo tenentismo, pela fundação do Partido Comunista. É um progresso que a evolução da consciência coletiva tenha avançado para identificar o problema central do país. Parece longe a percepção de que para curar, aos olhos estrangeiros, a ferida do país, simbolizada no Monte Castelo, a solução tenha sido derrubá-lo com jato d’água

Valor: E deu lugar a que?

Ricupero: Ao lugar onde hoje ficam os ministérios da Educação e da Fazenda no Rio. Lima Barreto protestou. Era o morro que marcava a fundação da cidade e era desse morro que se avistava a aproximação dos navios. Lá milhares haviam instalado muitos barracos. Era para lá que as pessoas se dirigiam para consultar sacerdotes e sacerdotisas dos cultos africanos. Eram as casas de pretos. Havia um grande esforço de embelezar a cidade e apresentá-la como uma capital moderna e aquilo tudo era considerado uma vergonha da miséria e do passado colonial do qual o Brasil não havia se libertado.

Valor: Vem daí então a analogia com a Argentina porque, de fato, parece que não há só um Monte Castelo, eles se proliferaram, não?

Ricupero: Sim. Outro dia fui à Praça da Sé. Morei lá perto, no Brás, quando era menino. Fiquei espantado. A praça hoje parece um acampamento com dezenas de tendas. A periferia está ocupando o centro. Nós de classe média, sobretudo em São Paulo, onde não há morro, podíamos nos dar ao luxo de ignorar a periferia. Podíamos viver a vida inteira sem nunca ir à Cidade Tiradentes. Só que agora a Cidade Tiradentes está ocupando o centro. No Rio se dizia “o morro vai descer”. Aqui foi a periferia que mudou de endereço. Então hoje está havendo um sentimento que é do extremo da miséria com o extremo da degradação política. E não apenas Bolsonaro, mas também o Centrão promove o auge do patriarcalismo e do patrimonialismo, que nunca foi tão escancarado quanto agora. Nunca o uso do poder para benefício próprio esteve tão evidente. Isso tudo leva à constatação de que o país não está dando certo. E diante disso você tem duas atitudes possíveis. A primeira é a de se resignar a essa ideia de que não deu certo em definitivo e ir embora, como aconselhou Simon Bolívar [“Na nossa América só há uma coisa a fazer, emigrar”]. A segunda é a de corrigir o que está errado e nos levantarmos, que é o que vai ser o processo eleitoral, uma coincidência feliz e infeliz com o bicentenário.

Valor: Por quê?

Ricupero: Infeliz por coincidir com o ânimo extremamente baixo de hoje e feliz porque as pessoas terão uma oportunidade de começar a mudar essa situação com seu voto. E a primeira coisa pra mudar é não dar um segundo mandato a Bolsonaro

Valor: De tantos revisionismos pelos quais a história brasileira passou, que heróis sobreviveram?

Ricupero: Como não sou partidário do extremismo, considero que há figuras na nossa história que são atuais, a começar por José Bonifácio. Ele foi o primeiro brasileiro, como se costumava dizer que Benjamin Franklin foi o primeiro americano. Na época da independência americana Franklin já tinha 80 anos, o que, para aquela época, era uma idade excepcional. Dos “founding fathers”, ele era o único que não era proprietários de terras e escravos. Vinha de família de artesãos. O pai era fabricante de velas. Ele encarnava o que o americano médio viria a ser no futuro, um homem construído por seu próprio esforço. Bonifácio, ao contrário de seus congêneres na América Latina, não era general ou bacharel, mas cientista, um mineralogista. Deve-se a ele a descoberta do lítio. E este cientista foi o autor da ideia de que o Brasil deveria se tornar independente com o príncipe herdeiro porque isso nos pouparia uma guerra civil. Um príncipe de sangue, chefe da dinastia, teria legitimidade como capitão do movimento da independência. Aceitou a monarquia não porque fosse monarquista convicto, como era o caso do Joaquim Nabuco, mas porque achava que era a fórmula que permitiria uma independência com menor sofrimento e menor possibilidade de guerra civil e fragmentação do país. O José Guilherme Merquior, antes de morrer, fez uma conferência intitulada “cem anos da República”. Em vez de fazer um balanço dos acontecimentos e dos números, ele fez um balanço dos sonhos que os brasileiros tinham para o país. Ele começava com o sonho do José Bonifácio: abolição, fim do tráfico de escravos, de acesso à terra para negros e índios, com financiamento do Banco do Brasil, pequena propriedade, fomento à imigração e desenvolvimento da indústria e da mineração. Ele escreveu uma série de projetos que foram editados pela professora Miriam Dolhnikoff, “Projetos para o Brasil”. Ia da monarquia constitucional à maneira de desenvolver o país, com miscigenação. Isso na época era uma coisa extraordinária porque muito tempo depois, em 1860, Abraham Lincoln, nos Estados Unidos, dizia que brancos e negros libertos não podiam viver juntos. Bonifácio só governou 18 meses. Foi ministro da Guerra, da Marinha, dos Negócios Estrangeiros, organizou Exército e Marinha, contratou o Lord Cochrane para submeter as províncias do Norte. Quando tudo isso estava pronto, ele não era mais necessário e d. Pedro o mandou pro exílio. E o projeto que vingou foi o escravocrata e latifundiário que dominou o país.

Valor: Esse projeto que ele sonhou para o Brasil contemplava uma ideia mais agregadora de nação, mas instalou esse ideário de conciliação nacional que acabou marcando as travas de mudança da história nacional até hoje, quando se discute uma saída para Bolsonaro que passa até por anistia. Isso não é parte do atraso?

Ricupero: A conciliação em si não é um objetivo errôneo. Mas é preciso que aconteça com base na justiça, e não no esquecimento dos crimes. Não creio que a conciliação com os militares tenha sido correta. Deveria ter havido reconhecimento dos crimes que aconteceram, ainda que se renunciasse à ideia da punição. Foi assim na África do Sul. É preciso a conciliação em cima do conhecimento da verdade. Não se pode construir nada em cima da mentira. Mas para não ficar só no Bonifácio queria acrescentar Luiz Gama. Ele nasceu na Bahia e foi vendido ilegalmente como escravo pelo pai porque nasceu livre. Veio como escravo para São Paulo. Aprendeu a ler com um estudante, se emancipou, readquiriu a liberdade. Era um rábula e dedicou toda sua vida a conseguir provar a liberdade de mais de 500 africanos escravizados ilegalmente. Morreu seis anos antes da abolição. Teve que defender quatro escravos que tinham matado o amo em Campinas e a tese é usada até hoje. Qualquer escravo que mate o senhor está agindo em legítima defesa. Conquistar a liberdade é maior que conquistar a vida.

Valor: Bolsonaro fez uma construção parecida em relação à vacina. Obviamente que o sentido é completamente diferente, mas a avalanche de notícias falsas não pode desvirtuar o sentido do bicentenário, que teria bolsominions proclamando que liberdade hoje é não tomar vacina?

Ricupero: O ano de 2022 vai combinar um período muito negativo com a expectativa de um ciclo novo que pode se iniciar com a eleição. Efemérides do gênero têm trazido à tona, no mundo inteiro, uma disposição mais de se pôr fogo nas estátuas. Mas a saída não é se perguntar se devemos estar alegres ou frustrados, mas fazer uma reflexão sobre o sentido desses 200 anos e extrair não apenas um balanço mas uma visão de futuro sob o signo da verdade. Não podemos ficar com lamúrias. Senão vamos tocar um tango argentino, como sugeriu Manuel Bandeira

Valor: O fiasco bolsonarista de 7 de setembro de 2021 afastou o risco de golpe?

Ricupero: Não podemos afastar o risco de atentado de candidatos, aconteceu no México e na Colômbia. Não se pode eliminar a possibilidade daquilo que uma mente doentia é capaz para criar confusão, mas em condições normais, por tudo que estamos assistindo, não haverá condições de um golpe dentro do golpe. Não tem apoio internacional nem interno. O que vou dizer não tem originalidade. Está se formando um consenso de que a mãe das prioridades é negar a Bolsonaro um segundo mandato

Valor: O que o senhor está dizendo é que 7 de setembro de 2022 pode cair no 2 de outubro?

Ricupero: Eleições sempre trazem uma renovação da esperança. Identifico no crescimento da candidatura [do ex-presidente] Lula e até no fato de que ele possa ganhar no primeiro turno esse elemento de esperança. Não é um julgamento de valor. Não sei se vai dar certo ou não. E nem lulista sou. Se a Marina [Silva] for candidata, voto nela. Votei na Marina e no [Fernando] Haddad em 2018 e escrevi um artigo chamado “o dever dos neutros”, citando Rui Barbosa: entre a justiça e a injustiça, ninguém pode ser neutro. Hoje noto que, na imensa maioria das pessoas com quem converso, sobretudo as pessoas mais modestas, empregadas domésticas e trabalhadores, há uma imensa esperança na vitória de Lula. E isso pode levar a um movimento de avalanche que fecharia a eleição no primeiro turno, o que tornaria muito mais difícil qualquer movimento de inconformidade. A eleição, por algum efeito mágico, desperta um movimento de alegria. Mesmo que se decepcionem, o sentimento de alívio é muito grande.

Valor: Esse sequestro do Orçamento de 2022 não azeda as perspectivas para este ano do bicentenário?

Ricupero: Não excluo que haja momentos conflitivos. Faço até um paralelo. 1922 foi tudo aquilo que sabemos. Semana de Arte Moderna, mas também o início do movimento tenentista que derrubaria o regime criado pela República. O início foi tumultuado. Em março foi eleito Artur Bernardes. Mas até novembro quem governou foi Epitácio Pessoa. E o clima era de contestação, de crise da República Velha. Era um país em estado de sítio. Tinha havido a Revolta do Forte de Copacabana. Oito anos depois houve uma revolução que derrubou o sistema. O regime atual está chegando próximo ao fim. O sistema que foi estabelecido em 1988 com a Constituição está dando sinais de disfuncionalidade e isso se vê num fato: dois impeachments na Nova República. Este é o remédio heroico, feito para não ser usado. Quando começa a ser normatizado é por causa da degradação. A imensa maioria dos congressistas pratica o patrimonialismo e isso vai tornar o sistema inviável. Ou se autorreforma ou será destruído. Não vejo isso com pessimismo, mas não vejo [Arthur] Lira e [Rodrigo] Pacheco capazes de reformar e cortar na própria carne. Eles vão acabar sendo tragados. Se o sistema não se autorreformar vai se autodestruir, como na monarquia, que não conseguiu se autorreformar.

Valor: Mas todas as forças não empurram para a conciliação?

Ricupero: Não sei como vai ser, mas sei que será inevitável. É uma lição da história. Um sistema nasce, vive e morre. Só não morre quando se autorreforma. Há sistemas que têm essa capacidade. Sem querer dar a isso um caráter fetichista. Os regimes brasileiros não duram mais do que 40 anos. O primeiro período acaba com a abdicação. O segundo não começa com a maioridade, mas em 1848. Pedro II só governou a partir de 1848. Foi a partir daí que começa o regime oligárquico, que durou 40 anos. A República Velha também. Nossa Nova República já está próxima do esgotamento.

Valor Econômico