Publicado em 3 de dezembro de 2021 por Tribuna da Internet
Malu Gaspar
O Globo
A intensa movimentação no cenário político nas últimas semanas sugere que a entrada de Sergio Moro (Podemos) na corrida presidencial tem potencial para alterar a correlação de forças na eleição. Mas o crescente interesse pela candidatura também o colocou bem cedo diante da pergunta que o acompanhará enquanto tiver alguma chance no pleito: de que forma Moro lidará com o Congresso, caso seja eleito?
Que tipo de negociação o ex-juiz da Lava-Jato pretende fazer com as lideranças de partidos que foram alvo da operação conduzida por ele?
CONVENCER ELEITORES – Como pretende convencer os eleitores de que, se eleito, terá mais sucesso do que quando era ministro da Justiça na aprovação de seus projetos? Qual a garantia de que a relação conflituosa entre o ex-juiz e a classe política não paralisará um eventual governo seu (e o país) por mais quatro anos?
Sempre que confrontado com essas questões, Moro recorre a declarações de livro-texto. Numa reunião com investidores da corretora XP, em São Paulo, afirmou que é um “homem do diálogo” e que considera possível negociar em torno de projetos. De acordo com ele, o absoluto fracasso de Jair Bolsonaro em ter uma relação livre do fisiologismo e do toma lá dá cá com o Parlamento é fruto da falta de liderança do presidente.
Também disse que, embora não vá abandonar o combate à corrupção, tem consciência de que o papel de um presidente da República é garantir a governabilidade.
PESSOAS BOAS – Numa entrevista à Bloomberg, falou que “há pessoas boas no Centrão” e que “dentro de cada partido tem bons indivíduos que podem somar com projeto e diálogo republicano”.
Não há dúvidas de que um governo republicano e democrático pressupõe uma relação de respeito entre Legislativo, Executivo e Judiciário, nem de que não há nada de intrinsecamente errado em fazer coalizões políticas — desde que sejam limpas — para governar.
Mas não deixa de ser irônico que um personagem que se fez popular combatendo o “sistema” agora tenha como uma de suas missões provar que poderá conviver harmonicamente com esse mesmo sistema em nome da governabilidade.
OUTRO MOMENTO – É verdade que o discurso antissistema perdeu o apelo e a credibilidade desde 2018. O momento histórico é outro. Bolsonaro, que se elegeu prometendo governar diretamente com o povo e dar uma banana ao “sistema”, foi fagocitado por ele e por seu orçamento secreto. Lula, por sua vez, conduziu seus governos do mensalão ao petrolão, e não consta que teria problemas em se relacionar com esse mesmo Congresso.
O próprio Moro se viu acuado pelo caso Vaza-Jato, aderiu ao governo Bolsonaro e perdeu a aura de herói impoluto.
Nessa troca de pele de juiz para político, Moro diz que venderá um “sonho” ao país e se propõe a ser diferente dos principais competidores. Como ele pretende fazer isso, não se sabe. O que ele diz no livro que acaba de lançar, “Sergio Moro contra o sistema da corrupção”, não ajuda a dissipar as dúvidas.
COMPROMISSO FAKE – Ao relatar sua experiência no governo, Moro diz que mais de uma vez acreditou que Bolsonaro cumpriria a promessa de punir Flávio e Fabrício Queiroz, se fosse preciso. Enumera situações em que o presidente deu provas de que o compromisso com o combate à corrupção era tão fake quanto algumas das notícias que espalhou na campanha eleitoral.
“Se não vai ajudar, não atrapalhe”, teria dito Bolsonaro quando Moro lhe pediu para ajudar a derrubar a liminar de Dias Toffoli que suspendeu todas as investigações do Coaf, incluindo as que flagraram a rachadinha de Flávio e Queiroz.
É o ex-juiz da Lava-Jato quem escreve: “Por uma questão pessoal, o presidente pedia a mim que ignorasse aquela séria ameaça ao sistema nacional de prevenção à lavagem de dinheiro”.
AGUENTOU HUMILHAÇÕES – Ainda assim, Moro ficou no governo, aguentando mais humilhações. Engoliu o abandono de Bolsonaro ao pacote anticrime, aceitou trocar um superintendente da Polícia Federal e só saiu quando o próprio presidente tornou sua permanência inviável.
Difícil acreditar que alguém que diz ter o couro grosso e está habituado a situações difíceis, como Moro, tenha realmente sido tão ingênuo com Bolsonaro como ele diz que foi. É ele mesmo quem admite que, enquanto pôde, ficou em silêncio. Hoje, diz que errou ao aceitar o convite de Bolsonaro. Não se pode saber o que mais o ex-ministro viu no governo que não contou, nem qual sua solução para lidar com o “sistema” sem confrontá-lo, como fez na Lava-Jato, ou se calar, como fez com Bolsonaro.
Mas é certo que, enquanto persistir a contradição entre o que Moro diz que fará e o que de fato fez no governo, ele continuará sendo um candidato a presidente com pés de barro.