Movimentações atuais miram o futuro sem Lula
Por Bruno Carazza* (foto)
Na recém-lançada biografia Lula: Volume I, o jornalista Fernando Morais conta que, após deixar a cela da PF em Curitiba, o petista se dirigiu aos manifestantes que o acompanharam em vigília nos 581 dias de prisão. Depois do discurso inflamado, “Lula dá um beijo cinematográfico em Janja, desce a escadinha do palanque e, sem precisar anunciar a ninguém, pisa no chão como candidato a presidente do Brasil”.
Morais estava certo. A anulação dos processos contra Lula automaticamente definiu a escolha da esquerda para 2022. Líder com folga nas pesquisas, o recente périplo internacional mostra o apetite do petista por obter um terceiro mandato e, assim, terminar sua carreira política por cima.
O retorno de Lula reenergiza a militância e pode reverter a tendência de queda de votos nesse campo observada desde que ele passou a faixa para Dilma Rousseff, em 2011.
Computando os votos para deputado federal, verificamos que o conjunto de partidos inclinados à esquerda (PT, PSB, PDT, Psol, PV, Cidadania, PC do B, Rede, PCB, PSTU e PCO) viu seu eleitorado subir de 17,1 milhões de votos em 1998 para 31,3 milhões com a primeira vitória de Lula, em 2002.
A partir daí, ampliaram seu cacife gradativamente até atingir 38,1 milhões de votos no fim do segundo mandato lulista, em 2010. Sem Lula no páreo, contudo, os eleitores da esquerda recuaram para 31,2 milhões em 2014 e, no último pleito, 28,3 milhões de votos.
Mais do que a redução de sua força eleitoral, há uma dinâmica partidária nessa movimentação. O PT e seu satélite mais fiel, o PC do B, perderam cerca de 6 milhões de votos entre 2002 e 2018. Mas não há vácuo de poder, e esse espaço foi parcialmente ocupado pelo crescimento de PSB, Psol, Rede e - em 2018, com a candidatura de Ciro Gomes - PDT.
Esse fenômeno pode estar associado a diversos fatores, e merece ser estudado mais a fundo. A experiência de quase 13 anos no poder, que exigiu o pragmatismo de alianças ao centro e ao Centrão, pode ter afastado eleitores mais puristas. Escândalos de corrupção também teriam cobrado seu preço. A recessão legada pelo partido, por sua vez, pode ter despertado a vontade de se buscar alternativas econômicas em outras siglas ou candidatos. Uma outra hipótese seria a dificuldade do PT em se modernizar e assumir o protagonismo no debate de novos temas mais progressistas.
Há uma passagem na biografia em que Lula, após ler um livro na prisão, pergunta a um dos seus advogados: “Doutor, me explique uma coisa: o que é essa história de pauta identitária?” O fato de a principal liderança do partido estar tão por fora de um dos principais itens da agenda de seu campo político sugere como o PT pode ter envelhecido.
Em meio a todos esses processos, parcela expressiva dos antigos eleitores do PT buscou refúgio em novas (Rede e Psol) ou renovadas agremiações (PSB e PDT).
Outra dinâmica a se observar é a dificuldade que o PT tem de formar e lançar uma nova geração de políticos de relevância nacional. A entressafra fica clara quando se observa que, apesar de possuir uma bancada de 53 deputados e 6 senadores, eles perderam o comando da mobilização contra Bolsonaro no Congresso.
Na Câmara, a liderança da oposição vem sendo exercida por Alessandro Molon, enquanto o líder da minoria é Marcelo Freixo - ambos do PSB. No Senado, embora a minoria ainda seja capitaneada por um petista (Jean Paul Prates), o líder da oposição é Randolfe Rodrigues (Rede), um dos principais protagonistas da CPI da Covid, maior ação parlamentar contra Bolsonaro.
Na nova geração de quadros petistas, Fernando Haddad desponta como rara exceção - apesar de o livro de Morais deixar claro que a opção preferencial de Lula para substituí-lo na disputa de 2018 era o baiano Jaques Wagner e que, acompanhando as eleições da prisão, o petista demonstrou muita contrariedade com a forma como o ex-prefeito conduziu a campanha.
Embora seja o partido mais popular no eleitorado, com o retorno de Lula às disputas eleitorais os nomes mais promissores que surgiram nos últimos anos no espectro da esquerda estão se acomodando fora do PT, como Guilherme Boulos, no Psol, Manuela D’Ávila, no PC do B, e um extenso grupo que vai dos citados Molon e Freixo a Flávio Dino e Tabata Amaral, no PSB.
A intensa negociação do PSB tentando trazer para o seu lado o tucano Geraldo Alckmin e, assim, ocupar o posto de vice na chapa de Lula é a prova mais evidente de como os demais partidos estão se posicionando visando o futuro pós-Lula.
O retorno de Lula mexe com o jogo eleitoral do ano que vem. Mas, independentemente do resultado em 2022, no campo da esquerda as movimentações já ocorrem mirando o dia em que seu principal jogador pendurar as chuteiras.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Valor Econômico