segunda-feira, outubro 04, 2021

O fim da epidemia que não acabou

 




Na volta ao normal há morte, surtos, cidades e trens vazios e vidas secas de fome

Por Vinicius Torres Freire 

A empresa de trens da Grande São Paulo conta o número de vezes em que apreendeu mercadorias de camelôs em vagões e estações. Nos agostos de 2018 e 2019, houvera em média cerca de 6.000 apreensões. Em agosto de 2021, o número caiu para um oitavo, umas 700.

Muito camelô sumiu porque ainda menos gente anda de trem. Em agosto de 2019, 60 milhões de pessoas embarcaram nos trens da CPTM. Em agosto passado, 40 milhões, baixa de um terço. No Metrô, a diminuição foi maior, de 47%. Nos ônibus da cidade, também de um terço. A estatística de isolamento social do governo paulista indica, porém, que o estado voltou ao nível de março de 2020.

Onde estão as pessoas? Muitas estão sem trabalho, mas essa baixa na mobilidade dos em geral mais pobres foi grande até para o desemprego enorme. A vida nas cidades e no trabalho mudou ou se degradou, ainda não entendemos como.

De certo modo, a epidemia acabou: aparece menos nas manchetes ou nos temas mais assuntados das redes sociais. Em São Paulo, os bares estão animados e o congestionamento parece agora o de sempre. Há jantares, festas mal disfarçadas e até namoros novos, que preenchem vazios da epidemia de separações. São impressões superficiais da vida privilegiada, na qual se disseminou de vez a impressão de que “já deu”, reforçada pela ideia perigosa do “já estou vacinado” e pelo mote repulsivo do “eu mereço”. Mas a epidemia só acaba quando termina, o risco de surtos está no horizonte e a desgraça diante das fuças. Pense nos velhos: de cada 50 pessoas com mais de 70 anos em São Paulo, uma morreu de Covid. Ainda não acabou.

O número de pessoas ocupadas é o mais baixo desde 2012. São 89 milhões, ainda 4,5 milhões a menos do que em meados de 2019. A soma de todos os rendimentos do trabalho no país ainda é 6% menor que a de 2019. O número de famílias sem renda passou de 25% do total, pré-pandemia, para 28,5%, dado do Ipea.

Muitos nem procuram trabalho. Considerem a “taxa de participação”: o número de pessoas na força de trabalho (empregada ou procurando emprego) dividido pelo de pessoas de 14 anos ou mais. Antes da epidemia, essa taxa ficava em torno de 61,5%. Está em 58,2%. Pouca diferença? Isso quer dizer mais de 5,8 milhões de pessoas fora do jogo.

Em setembro, morreram 16.275 pessoas de Covid, cerca de 543 por dia. No terror maior de abril, eram 2.747 por dia; em fevereiro, quando a vacinação era ínfima, 1.088. Mas a média diária de mortes parou de cair na última quinzena.

Da população vacinável no país (12 anos ou mais), 84,9% já tomou uma dose, 52% já se vacinou de todo. Ainda assim, morre muita gente, sinal de vírus circulando loucamente.

A vacinação parou de acelerar. Desde julho, são 1,5 milhão de doses por dia. Mas, desde julho, o número de vacinas disponíveis por mês aumentou mais de 50%. No ritmo atual, o país vacinaria “todo mundo” apenas em meados de dezembro.

No final do ano começa a diminuir o efeito da imunização para muita gente. A epidemia terá sido controlada até lá? Agora haverá gente em estádio de futebol, em show, feiras, hotéis, aviões. Há risco de “surtos da liberação”.

O país não discute outras estratégias para conter o vírus e como lidar com as sequelas de corpo e mente da Covid. Como será a vacinação de 2022? A fome é tratada à moda Bolsonaro-Guedes, de modo cruel, desumano e degradante.

​A indignação se tornou uma raiva resignada para muitos; para outros tantos, a comoção coletiva e “solidária” de 2020, real ou marqueteira, se transforma em uma adaptação mesquinha. Existe alguma ideia nova sobre a vida? Pode ser. Mas parece que ela ainda espera o vírus desaparecer antes de sair de casa. ​

Folha de São Paulo