Por Paulo Fábio Dantas Neto* (foto)
Ainda não há número razoável de pesquisas para captar com segurança algum virtual efeito sobre a avaliação de imagem e sobre o nível de rejeição de Jair Bolsonaro que possa ter havido a partir de 9 de setembro, o dia da carta em que recuou da escalada golpista que culminara nos atos do dia 7. Seguiu-se uma distensão na sua atitude, o que levou parte dos analistas a supor que ele chamaria de volta à cena o Bolsonaro 2, mais contido e razoável. Afinal, era a conduta racional óbvia a seguir, diante da queda livre nos seus índices de popularidade e do isolamento político em que se metera. Amigos de fato (se é que os tem) devem ter lhe dito que valia, ao menos, testar a inflexão, para tentar reverter o desastre.
Parece que não haverá tempo para captar coisa alguma. A tal distensão logo se converteu em campanha eleitoral aberta (que em si mesma já é um delito), cenário propício para Bolsonaro voltar a ser o Bolsonaro de quase sempre. Tendo os mil dias como pretexto inicial, as usinas de fakenews voltaram a operar intensamente, elegendo alvos habituais de combate. Comunismo, homossexuais, a China e - é claro - Lula e o PT voltaram a ser temas privilegiados de suas taras retóricas, que são a base “conceitual” das fakenews.
Poupo os leitores de previsões sobre efeitos dessa recaída em índices de pesquisa. É preciso notar, por outro lado que, pela enésima vez, se revela o lugar que eleições ocupam na escala de prioridades de Bolsonaro. Lugar complexo, que é de prioridade no seu texto, mas no subtexto a prioridade é o movimento contra elas, para esterilizá-las, se possível ensanguentá-las e, no limite, cancelá-las. A cada dia é menos crível que tenha sucesso, mas ele segue nessa toada, como é da sua natureza. Se sucumbir, apesar de sua vontade indômita, ou por causa dela, quer levar muitos consigo, se possível a humanidade toda.
Trata-se do exercício pleno de um direito de natureza superficialmente hobbesiano (direito a fazer tudo que seu apetite quiser, por meios que seu cálculo indicar). Em sua versão bolsonarista, esse suposto direito não conhece limite de qualquer lei, nem mesmo da primeira lei de natureza que Hobbes sugere como uma lei racional de autopreservação. Ela indicaria ao apetitoso celebrar alguma paz, por ver também nos demais o potencial egoístico e destrutivo que reconhece em si. Esse cálculo racional seguinte ao movimento (também “natural”) de fazer a guerra, faria, do” homem lobo do homem”, um sujeito racional, com senso de perigo, ainda que dotado de razão limitada, guiada por instinto. O lobo que nos sequestra, tosco, temerário e criminoso, ofende a complexidade do homem hobbesiano e segue, na ignorância de si e do mundo, instando um país a pular com ele na vertical do precipício, endereço oposto ao que pode nos levar a política, sua maior inimiga.
É compreensível que uma sociedade assim sequestrada, como a do Brasil atual - onde vigora uma república democrática altamente inclusiva do ponto de vista eleitoral e governada num sistema presidencialista - resista institucionalmente, como corpo social e nacional (sociedade política e sociedade civil) e, ao mesmo tempo, busque, ao se constituir em eleitorado, sua salvação em quem encarne a ideia de política, na sua comunicação concreta com o cotidiano das pessoas comuns. Felizmente os dois movimentos estão ocorrendo e mostram que o país não está inerte, apesar da dor. Da reação institucional e civil resultam o relativo isolamento político e a contundente rejeição popular a Bolsonaro. Sua tradução pré-eleitoral é, no momento, a confortável liderança de Lula nas pesquisas. Engana-se quem tiver a visão toldada por certas idiossincrasias de cunho partidário. Os dois fenômenos são complementares. São, respectivamente, as faces republicana e democrática de um só movimento de autopreservação do país. A face republicana (a reação institucional e politicamente unitária em defesa da democracia) é perene, conservadora, como um firmamento e é bom que assim seja. A face democrática (liderança de Lula nas pesquisas) é, por definição, mais dinâmica e, como as nuvens no firmamento, está sujeita a deslocamentos visíveis, sem comprometer o sentido geral do movimento.
Proponho que se analise, sob essa moldura, as manifestações contra Bolsonaro, marcadas para este sábado. Escrevo antes que tenham ocorrido, logo, evitarei previsões imprudentes sobre seu nível de sucesso ou insucesso, em termos de afluência de público e, também, ilações prévias sobre como os atores políticos diversos as interpretarão a partir da noite de hoje. Sobre o que é esperado (ao menos do ponto de vista lógico, que, como sabemos, não é o único ponto de vista válido numa conjuntura como essa) pode-se dizer apenas que quem está contente com Bolsonaro deve torcer para que fracassem e recepcionará de modo simpático qualquer versão, real ou fake, que constate o fracasso. Inversamente, quem está descontente com o que se vive no Brasil engrossará a manifestação e/ou torcerá por elas. Aqui também se deve reparar em textos e subtextos.
Há visível e meritório esforço para divulgar esses atos de modo amplo, digo mesmo plural, evitando-se sua apropriação prévia por esse ou aquele partido. Do mesmo modo evita-se realçar os aspectos eleitorais que, objetivamente, estão envolvidos no ambiente político em que se dá a iniciativa. Há um evidente contraste entre esse tom moderado e precavido e a despudorada apelação eleitoral da insólita “celebração” bolsonarista dos seus mil dias de catarse, respectivos aos mil dias que já dura o infortúnio, para a maioria da nação. Um Henrique VIII de fancaria, que já cercado de varões de sangue, não pode, contudo, obrigar o povo a aceitar essa herança. Por isso insiste em sacrificar eleições e tudo o mais que há de feminino ao nosso redor, em busca de entregar o futuro do país a milícias de machos toscos e sanguinários, que hoje formam um séquito para ele e seus rebentos numerados.
Haverá quem diga que nas aventuras golpistas e machas de Bolsonaro sobra autenticidade, quem sabe até sinceridade, enquanto em atos políticos liberal-democráticos a dissimulação é a marca. Sociedades sofrem muito até compreenderem que a política é dissimulação benfazeja, se vista sob o prisma da representação. É ela, a representação, que permite (e obriga) ao político agir na direção de algo mais, além do seu interesse particular. Ao se dirigir a um ato público perante cidadãos mobilizados, ou ao falar com o eleitor que se dirige à urna, o político democrático procura, seja por convicção ou por sobrevivência (e uma coisa não anula a outra), prestar atenção nas aspirações e interesses desse público e colocar seus próprios interesses e expectativas em interação com eles. Por isso, um potencial candidato contém sua “sinceridade” ao perceber que as pessoas comuns ainda não estão se preocupando centralmente com a eleição e sim com coisas que afligem mais objetivamente o seu cotidiano e que podem fazê-las protestar contra Bolsonaro. Mais adiante votarão em alguém, mas atrapalha quem quiser fazê-las decidir seu voto agora.
O mesmo político que tem esse senso de limites e sabe calibrar seus desejos na dose e proporção corretas em que possam ser compartilhados por quem, afinal, é o senhor do seu futuro político, também sabe que não está na mesma posição objetiva do cidadão comum e eleitor. Se confunde realmente a sua posição de representante com a dos representados, ele é um descompreendido que deveria estar em outro lugar diferente da política. Se não confunde e faz de conta que confunde essa não é uma dissimulação benigna porque deseduca. Ele dissimula e adia a exposição de suas motivações não em respeito à prioridade das motivações do eleitor, mas no intuito de confundi-lo, tentando ocultar sua condição de parte da elite política, ou de aspirante a essa condição. Uma das coisas mais importantes para a maturidade de uma república democrática é a compreensão realista, por parte dos cidadãos e cidadãs, de que ela não é o governo do povo, mas sim o governo de governantes escolhidos pelo povo e exercido através de mandatos e partidos. Quem esconde isso dos seus eleitores pode se considerar democrata ou até sê-lo, em certo sentido. Mas será, principalmente, um demagogo.
Então que seja bem-vinda, no presente momento, a dissimulação das motivações eleitorais de políticos e partidos que apoiarem ou aparecerem nas manifestações de hoje. O país agradecerá por essa prioridade concedida à sua necessidade de protestar contra o que aí está. Mas isso não isenta o analista da conjuntura política de interpretar os movimentos dos vários atores políticos, pois eles, apesar de contidos pelas circunstâncias e limites da sua missão representativa, não podem e não devem deixar de agir estrategicamente. É exigência básica do ofício, que a sociedade deve fazer à elite política para que seja eficaz
Foi feliz a senadora Simone Tebet, ao se manifestar no modesto, mas significativo ato da Avenida Paulista, em 12 de setembro último. Disse ela que ali estavam reunidos o centro e a direita democráticos, que em outubro seria a vez da esquerda e que ela acreditava ser possível, em novembro, todos estarem reunidos num ato só. A sabedoria da fala consiste em, ao mesmo tempo, pregar a unidade e reconhecer, de modo realista, a diversidade que faz a sua construção ser complexa e por isso exige um tempo político para ser veraz.
Pois bem, chegou o dia da esquerda se submeter ao teste das ruas. Por mais que ela tenha dividido, estrategicamente, a convocação dos atos com outras forças, essa sabedoria prática (política) não revoga o fato de que é ela, a oposição de esquerda, a mola propulsora da mobilização de hoje. Políticos de centro e de direita nada perderão se reconhecerem isso. Assim como não perderão se admitirem o que salta aos olhos, isto é, que a esquerda tem uma capacidade de mobilizar muito maior. Ir além do óbvio é dever de quem pensa. Tentar negá-lo é erro crasso de quem age. Ademais, qualquer iniciante em política sabe que isso não é predição de necessário sucesso eleitoral. Há vários exemplos de situações políticas em que mobilizações da esquerda nas ruas abriram caminho a soluções políticas de centro pelas urnas. São exemplos de sinergia positiva entre esquerda e centro. Outros exemplos, agora de sinergia negativa, ocorreram quando manifestações volumosas da esquerda (como a do “elle não”, a uma semana do segundo turno de 2018) ajudaram à agregação do eleitorado conservador em torno de um proto-fascista como Bolsonaro. Em parte, isso depende do tom e sentido da mensagem política emitida por um ato público. Na maioria das vezes dá em desastre dizer em público o que se diz sob o teto da sua cozinha.
Penso que os atos desse sábado estão distantes desse erro. As cozinhas mais importantes estão fechadas em público e se pretende que o ato transcorra no salão principal, onde a moderação é a regra. Mas principalmente os políticos de centro ou de centro-direita que a ele comparecerem não podem se iludir ou fazerem de conta que não sabem quem é o sujeito oculto das festas que se farão Brasil afora, mesmo se o anfitrião real, sabiamente, se fizer representar por terceiros e, no caso de São Paulo - o salão principal - pelo terceiro que o representou até na urna, mas que agora, ao que tudo indica, terá sua missão limitada ao eventos preliminares, ou eventos-teste, como esse de hoje. Treino é treino, jogo é jogo. A folha seca não precisa vir agora e a rigor não se sabe de quem ela partirá, na hora devida.
Se Lula está, ao que parece, se contendo em limites convenientes ao que pode vir a ser uma candidatura ampla, de envergadura maior que sua própria trajetória como personagem do campo da esquerda (ainda que tenha um dia dito não ser de esquerda, hoje isso poderia ser um sincericídio, mas pode deixar novamente de ser, daqui a pouco), a contenção que se espera de quem pode vir a ser seu parceiro conflitivo num eventual futuro palanque é a de quem sabe o terreno em que pisará hoje e por isso pisará devagarinho. São todos convidados a uma festa que tem dono, por mais que venha a ser uma festa ampla e aparentemente gratuita, com direito a assinaturas colegiadas no convite formal.
Há dois tipos de visitas indesejáveis e incômodas em qualquer festa, mesmo as feitas oficialmente para apenas protestar: o puxa-saco e o bicão. O primeiro quer mimetizar os anfitriões, ostentar afinidades e sintonias artificiais e com isso enche o saco e granjeia desprezo. O segundo disputa protagonismo, é capaz de querer fazer as honras da casa aos desavisados, aparecer como parceiro nos bem-feitos e/ou crítico dos malfeitos da família. Para esse aí o primeiro remédio – “dar gelo”, que pode funcionar melhor com puxa-sacos – pode não bastar e aí os anfitriões podem tratá-lo como penetra e chamar a segurança.
Os que perseguem (no bom sentido) a terceira via não precisam proferir a palavra maldita. Cão que late não morde. Cabe ser educado na casa alheia, comportar-se como visita sensata, mas altiva, mesmo se convidada a se sentir em casa. E seguir trabalhando seu campo político para que chegue ao grau de agregação política e densidade eleitoral ao qual a esquerda chegou, não importa por quais caminhos ou com qual discurso ou programa. Importará sim, e muito, na hora de se dirigir ao eleitor, se o golpista que ocupa o governo já não oferecer perigo, nem de reeleição, nem de promover caos. Mas não nesse momento de ato unitário contra ele, quando o primeiro perigo saiu do horizonte, mas o segundo não.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fundação csatrojildo