domingo, setembro 26, 2021

"O fim da lei de improbidade administrativa".

 



É desalentador que uma Câmara em parte renovada em 2018 com parlamentares eleitos com o discurso anticorrupção tenha sido responsável pelo fim da ação de improbidade resultante de um projeto aprovado durante o controvertido governo Collor. 

Por Sergio Moro (foto)

Em junho do distante ano de 1992 foi publicada a lei 8.429, de improbidade administrativa. Aquele foi um ano turbulento. No mesmo mês de maio, Pedro Collor, irmão de Fernando Collor, concedeu entrevista à revista Veja na qual declarou que Paulo Cesar Farias seria um testa-de-ferro do então presidente. Depois da entrevista, os fatos se sucederam rapidamente, com novas revelações, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e a admissão do impeachment presidencial em 29 de setembro, seguida da condenação do presidente pelo Senado Federal em dezembro daquele ano.

É até surpreendente que o Congresso tenha sido capaz, nesse cenário conturbado, de aprovar a lei de improbidade administrativa, resultante, aliás, do encaminhamento de um projeto de lei do Executivo em agosto do ano anterior. Talvez o próprio escândalo de corrupção tenha impulsionado a tramitação e a aprovação da nova lei como forma de satisfazer a opinião pública.

Desde então, a lei de improbidade passou a ser manejada constantemente pelo Ministério Público, com a instauração de inquéritos civis para apurar improbidade administrativa e a proposição das ações decorrentes. Muitos promotores viram na lei a possibilidade de utilizar um instrumento de natureza cível para apurar e punir crimes contra a administração pública sob o rótulo de ato de improbidade. A estratégia consistia em evitar a morosidade do processo penal e os generosos prazos de prescrição previstos para as penas criminais, mas ausentes para as sanções decorrentes da lei de improbidade. Diferentemente do que prevê a penal, a lei de improbidade não permite a aplicação da pena de prisão. Mas as demais consequências são rigorosas, com a previsão de indenização completa ao erário, a devolução do patrimônio ilicitamente auferido, além de multas e penas como a perda de função pública ou de suspensão dos direitos políticos.

Sob o argumento de que estariam havendo excessos no emprego da lei de improbidade contra prefeitos do interior, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 10.887/2018 com o objetivo de alterá-la e coibir os afirmados abusos. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora está submetido ao Senado. A lei de improbidade constituiu um avanço. É muito natural que agentes políticos reclamem de alguns erros ou de excessos. Mas também é um equívoco tomar o todo pela parte. Pontuais injustiças no emprego da lei de improbidade não justificam o seu extermínio, o que será o resultado da aprovação do projeto de lei com a redação trazida da Câmara.

A imprensa, em geral, não tem dado muita atenção ao tema. Quando publicadas críticas, o foco tem sido na parte material da lei, especialmente na supressão de algumas hipóteses de improbidade e na redação limitadora do texto. O foco da imprensa na parte material da lei é natural, pois é de mais fácil compreensão. Entretanto, a maior preocupação que o projeto suscita diz respeito à parte do processo. Parafraseando parte da famosa frase da campanha eleitoral do ex-presidente Bill Clinton, “é o processo, estúpido” o verdadeiro ponto relevante. Podemos fazer um paralelo com o que acontece para o crime de corrupção. Temos uma lei relativamente adequada que define corrupção como crime, mas quase ninguém é condenado salvo em raros casos ou em períodos extraordinários como durante a Operação Lava Jato. É o processo de aplicação da lei que não tem funcionado e, quando se avançou, recentemente, para fazê-lo efetivo, com a admissão, por exemplo, da condenação em segunda instância, logo entraram em ação os interessados na contrarreforma.

O projeto de lei traz para a ação de improbidade alguns dos piores vícios que acometem de inefetividade o processo criminal brasileiro. Uma delas a prescrição intercorrente. Vamos explicar. É razoável que a lei estabeleça, para segurança jurídica, um prazo razoável entre um fato e a propositura da ação com base nesse fato pelo autor. Decorrido o prazo, mesmo que o fato tenha ocorrido, perde-se a possibilidade de reclamar o direito ou de impor uma sanção perante a Justiça. O instituto é normalmente denominado prescrição, às vezes de decadência, em virtude de nuances que só os juristas entendem. Até mesmo no direito anglo saxão, mais efetivo, se tem prazos, com os chamados estatutos da limitação, embora certos crimes, como aqueles contra a vida, não sejam em geral submetidos a qualquer prazo para serem punidos. Prever um prazo para começar uma ação e assim punir a inércia e fomentar a segurança jurídica é uma coisa. Prever que o prazo corre mesmo após a propositura da ação, é uma criação heterodoxa que destruiu o processo penal brasileiro. Por exemplo, o Ministério Público tem três anos a partir do fato para propor ação penal por crimes menores, mas, após proposta a ação penal, se passarem mais de três anos até a sentença ou desta para o julgamento de eventual apelação, o crime prescreve, gerando impunidade. Na prática, isso gera um estímulo para os demandados e seus defensores pleitearem medidas protelatórias, já que podem ganhar o caso apenas com o decurso de prazo, sem a necessidade de discutir o mérito.

Na ação de improbidade, considerada de natureza cível e não penal, não havia nada disso, mas o projeto muda esse quadro, instituindo a prescrição intercorrente também para ela. Prevê um prazo à primeira vista generoso de prescrição de oito anos entre o fato e a propositura da ação. Mas o prazo cai para quatro anos na prescrição intercorrente, por exemplo, entre a propositura da ação e a sentença. Quatro anos podem parecer tempo razoável, mas quem conhece a realidade dos nossos tribunais recursais e superiores, em que o julgamento de casos complexos demora anos, sabe que são insuficientes, especialmente quando o réu tem incentivos para protelar. Recordo-me, para ilustrar, que as condenações que foram exaradas contra os gestores do Banestado no escândalo das contas CC5 foram prejudicadas, em sua maioria pela prescrição, pelo decurso de prazo excessivo para julgamento dos recursos. Também já vi casos de homicídio prescreverem pelo decurso de até doze anos na espera de julgamento de recurso em Tribunal Superior.

Além da prescrição intercorrente, o projeto estabelece o prazo de seis meses para a conclusão da investigação sobre ato de improbidade, prorrogáveis por mais seis meses. Um ano para investigações pode parecer muito, mas infelizmente não é. Casos complexos – e são esses que normalmente envolvem os fatos mais graves – podem levar muito mais tempo.

Ouvi de defensores do projeto que os prazos exíguos levariam o Ministério Público a acelerar as investigações e o Judiciário a imprimir celeridade na tramitação dessas ações e os julgamentos. Não é isso que irá ocorrer, como é previsível. Ao gerar incentivos para a adoção de medidas protelatórias pelos réus, o oposto ocorrerá. Foi o que aconteceu no processo penal e é o que irá acontecer com a ação de improbidade.

Não entro nos demais detalhes do projeto e que são também ruins, pois o espaço é escasso. Quando o projeto foi aprovado na Câmara, alguns agentes políticos comemoraram publicamente. Seria o fim da judicialização da política e dos excessos com a ação de improbidade. Na verdade, a comemoração era pelo próprio fim da ação de improbidade. É desalentador que uma Câmara em parte renovada em 2018 com parlamentares eleitos com o discurso anticorrupção tenha sido responsável pelo fim da ação de improbidade resultante de um projeto aprovado durante o controvertido governo Collor. Vamos esperar que o Senado melhore o projeto, o que significa rejeitar a maioria das alterações da Câmara. Há razões, porém, para ceticismo.

Revista Crusoé