domingo, setembro 26, 2021

Como o progressismo vampirizou a esquerda

 




Hoje, se uma mulher quiser aparecer seminua sem sofrer com a patrulha, tem que ou ser obesa mórbida, ou amputar os seios saudáveis. Num caso, trata-se de “desconstrução dos padrões de beleza” e de “combate à gordofobia”; noutro, trata-se de ativismo trans. 

Por Bruna Frascolla (foto)

Já venho escrevendo muito neste espaço que o liberalismo é incompatível com o progressismo, uma vez que o progressismo distribui privilégios enquanto o liberalismo exige igualdade perante a lei. Neste texto, dei minha explicação para os liberais econômicos do Brasil caírem no progressismo: a política desastrosa de Dilma Rousseff foi traduzida num embate entre os economistas da Unicamp (fracassados) e os economistas liberais. A vitória do liberalismo se deu no campo econômico, e sua face política terminou esquecida.

Mas o fato simples com o qual muita gente pode concordar é que o rótulo do “liberalismo” vem sendo sequestrado no Brasil pela esquerda. Agora quero fazer uma cronologia com isto: tal sequestro ocorreu por volta do impeachment, quando a esquerda petista colapsou de vez.

Muita gente apontou que esse novo significado de “liberal” no Brasil é uma imitação dos Estados Unidos. É verdade. Mas o trajeto lá é diferente, já que “esquerda” e “direita” não são denominações comum no seu vocabulário. Liberais como Friedrich Hayek e Milton Friedman já apontaram que socialistas se apoderaram do termo naquele país em específico; e Jordan Peterson, canadense, costuma dizer que é um liberal não no sentido particular dos Estados Unidos. Nenhum deles, porém, tem uma teoria clara sobre o porquê de os socialistas terem feito isso. Thomas Sowell diz que é rebranding; que o pensamento dominante da “Progressive Era” – o progressismo –, notoriamente racista e eugenista, foi rebatizado como “liberal” depois do fim dessa era.

Penso que este é um fato importante para pensar no Brasil e recuar na cronologia. Antes de vampirizar o liberalismo, o progressismo, no Brasil, fez isto com a contracultura em particular e com a esquerda em geral.

A contracultura brasileira

A quem quiser se inteirar da contracultura brasileira, recomendo a quase autobiografia de Antonio Risério, o romance “Que você é esse?”. Captura bem o espírito do movimento: a URSS entendida como uma grande viagem utópica do outro lado do mundo; o entusiasmo com os hippies; a vontade de acessar o desconhecido por meio de drogas e sexo; a libertação sexual do amor livre, que passava pela experimentação da homossexualidade; a exaltação estética de manifestações culturais desprezadas pelo cânone eurocêntrico. Ah, e a absoluta falta de interesse em pegar em armas. Tratava-se daquele grupo que os militares chamavam de “esquerda festiva”.

Um movimento estético como a contracultura pode começar e terminar sem entrar na seara do legislativo. Mas, se pudermos traduzir demandas, elas serão pautas de costumes contrárias ao puritanismo dos censores da ditadura. Essas pautas são: (1) liberdade sexual para mulheres e homossexuais; (2) reconhecimento do valor de africanos e indígenas na formação do Brasil; (3) liberdade artística. No primeiro item surge naturalmente um anticlericalismo. A defesa do aborto se dava dentro dessa chave da liberdade sexual e do anticlericalismo. Nessa época, era possível encontrar gays contrários ao casamento gay por entenderem que isso era sujeitar-se a instituições burguesas. O segundo item é 100% conciliável com a defesa da obra de Gilberto Freyre e com a exaltação da brasilidade; além disso, desperta a revolta contra o “imperialismo ianque” que quer transformar o Brasil numa sociedade birracial. O terceiro item era oposto à censura prévia vigente na ditadura.

No finzinho dos anos 60, a Fundação Ford chega ao Brasil e começa a financiar o progressismo, que não era então entendido como esquerda, haja vista que ser de esquerda, na época, era ser anti-EUA. Esse financiamento teve sua expressão mais significativa, ao meu ver, com duas coisas: a criação do CEBRAP e a promoção de Florestan Fernandes. O CEBRAP abrigava os adeptos da Escola de Frankfurt e da teoria crítica que foram aposentados da USP pelos militares. Um nome bem importante é o de FHC, e podemos dizer que o PSDB saiu do CEBRAP. Quanto a Florestan Fernandes, já escrevi sobre ele aqui.

A segmentação e captura pelo progressismo

De todas essas pautas, só uma coincidia com a Progressive Era: a do aborto. Mas o aborto era defendido por um motivo completamente diferente, que era a eugenia e o controle populacional. Depois, o capitalismo de Estado veio a apoiá-la por causa do mercado de tecido fetal a ser vendido para a indústria farmacêutica. Dentro da perspectiva contracultural, é possível defender o aborto como um remédio extremo a ser aplicado nos primeiros meses somente quando a contracepção falhou. Dentro da perspectiva eugenista, o aborto também pode ser um remédio extremo, já que a contracepção deve ser mantida. Com o mercado do tecido fetal, porém, a coisa muda de figura: o aborto é uma coisa boa em si mesma, e deve ser feito tão tardiamente quanto possível. Isso explica vermos gente falando de aborto até em situações que deveriam ser chamadas de antecipação do parto. E se a venda de tecido fetal for muito mais rendosa do que a venda de camisinha e anticoncepcional, a corrente eugenista tem motivos para se tornar uma defensora ativa do aborto em si mesmo, e tão mais tardio quanto possível.

Se o aborto antes era entendido como parte da liberdade sexual em geral, no progressismo não existe essa concepção geral. Cada pauta tem o seu quadrado. O aborto está no quadrado das mulheres. Os outros quadrados são o dos negros e o dos LGBTQUIABO.

O progressismo faz de tudo contra a liberdade sexual das mulheres, e é de se perguntar onde eles vão achar tecido fetal com tanta campanha anti-sexo. Notemos que mulheres não podem mais ter sua beleza física exposta em público; só quem pode exibir um belo físico em revistas e telas são os homens. A campanha contra a “objetificação”, isto é, contra a exibição de belas formas femininas, é digna dos Talibãs. No entanto, entre os Talibãs e os progressistas há uma diferença importante: os Talibãs proíbem a exibição de qualquer tipo de mulher; os progressistas exaltam a exibição de mulheres com físico doentio. Hoje, se uma mulher quiser aparecer seminua sem sofrer com a patrulha, tem que ou ser obesa mórbida, ou amputar os seios saudáveis. Num caso, trata-se de “desconstrução dos padrões de beleza” e de “combate à gordofobia”; noutro, trata-se de ativismo trans.

Quanto ao sexo, no que depender de movimentos como o Me Too, nenhum homem canta uma mulher, e nós agora teremos de nos acostumar ao risco de ouvir um “não” e ficar com o ônus de dar em cima dos homens. No Brasil, onde o erotismo é tradicionalmente frequente na vida pública, temos o advento das performances escatológicas com gente feia pelada se apalpando. Eles se esforçam para reduzir do sexo à bestialidade e para acabar com o erotismo. No frigir dos ovos, é propaganda anti-sexo.

No quadrado dos negros, os progressistas defendem que o Brasil é um país racista, muito pior do que os Estados Unidos da segregação, porque aqui temos miscigenação. Ao pichar a imagem do Brasil, os progressistas escolheram Gilberto Freyre como inimigo número um.

No quadrado dos LGBTQUIABO, as clínicas de gênero dos progressistas se empenham em castrar crianças que têm chance de se tornar gays e lésbicas. Um menino mais feminino e uma menina mais masculina são tachados de “gender non-conforming” e enviados para “terapias” de afirmação de gênero, onde aprendem que estão no corpo errado e precisam se submeter a uma série de experimentos médicos castradores. Abigail Shrier, que investigou esse tema, constatou que, nas escolas aonde a ideologia de gênero chegara, existiam muitos trans e nenhuma lésbica. As jovens que se submetem a esses experimentos não são informadas de que a vagina atrofia e perde lubrificação.

Ninguém gosta dos progressistas

É evidente que o pensamento progressista é abominável. Ele só consegue ser aceito enquanto se faz passar por outra coisa – e penso que deveríamos anunciar aos quatro ventos que tecido fetal é mercado, já que isso é capaz de chocar um leque muito maior do que o público religioso pró-vida. Se a moral brasileira não fosse mais tolerante com o aborto do que a do militante pró-vida, não teríamos lei permitindo aborto em caso de estupro.

Quando a contracultura era legal, os progressistas a vampirizaram. No pós Lava Jato, quando a esquerda implodiu, eles saíram à cata de uma vítima nova. Bastou o liberalismo deixar de ser xingamento no Brasil e agora estão agarrados no seu cangote. Se o liberalismo implodir, eles vão seguir rondando até achar outra vítima. Só nos resta ter clareza quanto ao que é humano e o que é desumano para não sermos enganados.

Gazeta do Povo (PR)