A pandemia trouxe a ciência ao centro da vida dos brasileiros e do debate político. Epidemiologistas, virologistas e infectologistas de ocasião passaram a debater uso de máscaras, eficácia de vacinas, taxas de contágio, distanciamento social, imunidade de rebanho — e tudo o que tivesse relação com o coronavírus. O conhecimento avançou rápido, produziu vacinas em tempo recorde e acumulou quantidade sólida de evidências sobre prevenção e tratamento da Covid-19.
Lado a lado com a ciência, porém, proliferou também a ignorância. Como a ciência trabalha diante do desconhecido, tenta reduzir o espaço para dúvidas, mas sem nunca extingui-lo, é incapaz de fornecer o tipo de certeza que a população gostaria de ter. Políticos se aproveitaram dessa limitação para disseminar desinformação e arrebanhar apoio entre incautos.
Não há melhor exemplo do que o presidente Jair Bolsonaro fazendo propaganda de remédios sabidamente ineficazes contra a doença. Até as emas do Palácio da Alvorada e o mármore de Carrara das Nações Unidas foram obrigados a ouvir lorotas sobre o tresloucado “tratamento precoce” à base de cloroquina, ivermectina e que tais. Na CPI da Covid, os mesmos absurdos são repetidos feito disco riscado pelos senadores Luiz Carlos Heinze, Eduardo Girão, Marcos Rogério, Marcos do Val e os demais identificados como “bancada da cloroquina”. Transparecem, cada um com seu estilo, tanta obtusidade que chega a ser patético.
Mas uma coisa é a ignorância, resultado sem dúvida da falta de acesso ao conhecimento ou de abertura ao aprendizado. Outra, bem diferente, é a avalanche de descobertas recentes sobre os brasileiros usados como cobaias humanas em testes que violaram os princípios éticos mais fundamentais.
As principais acusações pesam contra a Prevent Senior, nova protagonista da CPI. As denúncias vão muito além da mera distribuição do nefando “kit Covid” com drogas ineficazes, propagandeado pelo bolsonarismo sob o beneplácito pusilânime do Conselho Federal de Medicina. A GloboNews revelou que médicos da Prevent omitiram mortos num estudo fajuto divulgado no ano passado para promover a cloroquina, adulteraram prontuários para esconder mortes pela Covid-19 e foram proibidos de informar aos pacientes que remédios tomavam. Um diretor da Prevent chegou a insinuar ao médico que denunciara o esquema que “ameaçasse o repórter”.
Não foi a única tentativa de sufocar a imprensa. Os responsáveis por outra pesquisa com cobaias humanas no Amazonas, ligados à rede Samel, tentaram censurar na Justiça a reportagem do GLOBO que revelava detalhes de como mentiram aos pacientes e continuaram a aplicar outra droga ineficaz — a proxalutamida — mesmo naqueles com piora visível, apenas para inflar os resultados. Esse “estudo” acabou em 200 mortes, muitas evitáveis.
É ocioso repetir que tais práticas violam todos os protocolos e normas éticas em vigor. Aparentemente, tudo em nome da fama fácil de aplicar um verniz científico ao negacionismo bolsonarista. Prevent Senior e demais envolvidos não podem alegar ignorância. Não se trata de charlatanismo inócuo. As evidências apontam para crimes da pior espécie, que jamais esperaríamos de cientistas, mas infelizmente são mais comuns do que gostaríamos. Investigação e punição precisam ser rápidas, firmes, exemplares.
O Globo