Mesmo sem golpe, Bolsonaro pode receber dividendos
Por César Felício (foto)
Golpe no Brasil quem dá é o Exército. Assim mostra a história em todas as interrupções da institucionalidade: 1889, 1930, 1937, 1945, 1955, 1964, 1969. Ainda que no caso da guerra civil de 1930 e do movimento de 1964 a participação de governadores e das classes médias tenha sido marcante, quem deu o tiro de misericórdia nos governantes de turno tinha estrelas nos ombros. Do mesmo modo o civil Getúlio Vargas não conseguiria dar o autogolpe do Estado Novo sem os marechais Dutra e Góes Monteiro.
Portanto, não é provável, para dizer o mínimo, que por si só policiais militares organizados em redes sociais, junto com caminhoneiros, pastores evangélicos e alguns magnatas do varejo derrubem o que chamam de “sistema”, ainda que insuflados pelo presidente da República.
As ditaduras do século 21, ou semiditaduras, ou “democracias iliberais”, como queiram chamá-las dependem de legitimidade advindas da aprovação popular, algo que Bolsonaro com sua rejeição acachapante não tem por agora.
Deste modo, a prova dos nove está no Exército. Ali é a fronteira entre o golpe ou não, sendo que, nas circunstâncias atuais, a ruptura institucional seria uma aventura fadada ao fracasso. “Está todo mundo com medo. Não tem lastro para isso no mercado brasileiro, no internacional, no empresariado real, na mídia, no Congresso, no governo dos Estados Unidos, no Judiciário e na maioria do eleitorado. Quebra o país e o governo cai em 30 dias”, projetou um alto executivo de um grande banco nacional, preocupado com a hipótese.
A questão é que, afora o Judiciário, ninguém se propõe a uma ação preventiva. Perplexa, a nação assiste Bolsonaro a ameaçar as instituições todos os dias. Agora já não se acredita mais que o presidente faça apenas jogo para a sua arquibancada, mas o estarrecimento supera a capacidade de reação.
Da história dos nossos golpes militares, um chama a atenção. Em 1955, a oposição ganhou as eleições presidenciais. O governo Café Filho procurou impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek, lançando mão de argumentos jurídicos fantasiosos. O comandante do Exército afastou o presidente em exercício, Carlos Luz (Café Filho estava adoentado e seria declarado impedido alguns dias depois), confrontando setores da Marinha e da Aeronáutica. O grau de insucesso mundial de golpes de governos derrotados nas urnas beira os 100%, e isso talvez estimule Bolsonaro a agir antes.
Por isso o pronunciamento do Dia do Soldado do general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, comandante da força terrestre, era tão aguardado e está sendo tão estudado por todos os que acompanham a cena política. General apolítico, Paulo Sérgio é um homem sob pressão. Duas pessoas podem desestabilizá-lo: o ministro da Defesa, Braga Netto, e principalmente o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos. A frase chave da sua fala foi: “A atuação de Caxias foi marcada pela conciliação, pela superação de posições antagônicas, e, sobretudo, pela prevalência da legalidade e da Justiça, e do respeito a todos.”
“Não me parece que o Exército esteja interessado em golpe e a mensagem do Dia do Soldado autoriza esta convicção”, comentou o cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco, uma das maiores autoridades acadêmicas sobre Forças Armadas.
Zaverucha ressalta que é muito fácil para o Exército enquadrar qualquer insubordinação de policiais militares. O arcabouço legal forjado no regime militar para controlar as PMs não foi revogado. Está em desuso, mas existe uma Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM). “A bola está com o Exército. Se o Exército travar o golpe, trava as polícias. Ele pode intervir em qualquer unidade da PM, em qualquer lugar”.
As policias militares, ainda que subordinadas aos governadores, são forças auxiliares do Exército. Só não são controladas mais de perto pela força terrestre porque o próprio Exército foi soltando as amarras. Por muitos anos a IGPM foi comandada por um general de divisão. Hoje é tocada por um coronel. Mas as normas baixadas nos governos de Castello Branco e Costa e Silva estão lá. Recepcionadas pela Constituição de 1988.
Apenas por hipótese, digamos que em algum momento uma turba enlouquecida ocupe o Congresso e a Suprema Corte, realizando o devaneio do cantor Sérgio Reis. O Artigo 142 da Constituição Federal fala que as Forças Armadas podem ser acionadas por iniciativa de qualquer um dos Poderes para a garantia da lei e da ordem.
Se o comandante supremo das Forças Armadas, o presidente da República, não as acionar, estaria configurado o crime de responsabilidade de acordo com o Artigo 85 da Constituição e teria que ser feito um impeachment pelo Senado, se Senado ainda existir.
Na leitura de um influente ex-ministro da Defesa, o comandante do Exército, caso fique inerte, estará obedecendo ao comandante supremo. Se não ficar inerte, afastando o presidente, estará restabelecendo “os Poderes constitucionais vigentes”, como disse o marechal Lott em 1955. Estará em zona de conforto, portanto, para exercer o famoso “poder moderador”. “O Exército não quer ser âncora do presidente, quer ser âncora dele mesmo”, sintetiza Zaverucha. Nessas horas, é bom lembrar que o vice é um general.
O mais provável, contudo, é que nada disso aconteça. Porque Bolsonaro pode ter algo a lucrar mesmo que siga cada vez mais isolado e que o poder escorra de suas mãos em uma derrota eleitoral em 2022.
Neste caso, manifestações como a do 7 de setembro terão seu valor. O presidente sedimenta sua base em uma relação dialética, em que ele a estimula e é estimulado por ela. Constrói uma não aceitação da derrota que o vitaliza. “O bolsonarismo talvez tenda a se constituir em um movimento que sobreviva ao governo Bolsonaro”, comenta o historiador Odilon Caldeira Neto, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenador do Observatório de Extrema Direita, uma rede formada por pesquisadores.
E até eleitoralmente o escarcéu pode ajudá-lo. A radicalização tende a ser recebida com antipatia pelo grosso dos eleitores, mas dá a Bolsonaro a vantagem estratégia de pautar o debate, algo fundamental no processo eleitoral.
Valor Econômico