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Os “fura-filas” da vacina: por que alguns se acham mais importantes?
Campanha de imunização contra a Covid-19 expôs uma chaga do comportamento social no Brasil
Por Analice Gigliotti
A vacinação contra a Covid-19, um dos maiores anseios coletivos da história da humanidade, teve início há quase dois meses na Inglaterra. Em todas as nações onde o processo já começou – de Israel ao Canadá, passando por Estados Unidos, Argentina e Austrália – o que vemos é um plano de imunização que respeita prioridades: profissionais de saúde, idosos, grupos de risco.
Mas eis que a vacinação finalmente começou no Brasil… e o que estamos vendo? Uma sucessão de casos de “fura-filas”, pessoas que valendo-se de influência política, profissional ou social já foram imunizados embora estejam longe de fazer parte dos grupos prioritários. Os casos se multiplicam em todo o país: já há ocorrências de “fura-filas” em 16 Estados. No Rio Grande do Sul, dois servidores foram afastados por tomarem a primeira dose. No município de Jupi, em Pernambuco, o fotógrafo oficial da prefeitura será investigado por furar a fila da imunização. Em Itabi, a 134 quilômetros de Em Itabi, a 134 quilômetros de Aracaju, o prefeito quebrou o protocolo e se vacinou, embora não faça parte de qualquer grupo prioritário. Em Manaus, onde a crise beira o caos, a vacinação foi suspensa tamanha a quantidade de casos de “fura-filas”. São dezenas de casos, um mais bizarro que o outro.
A vacinação contra a Covid-19 escancara um traço da personalidade do brasileiro que evitamos olhar de frente: o egoísmo no convívio coletivo. Mas não é o modus operandi a que assistimos em outras outras áreas da vida cotidiana? Furar a fila da vacina não seria uma derivação do carro que passa pelo acostamento enquanto todos estão parados no engarrafamento? Ou aquele “ixperto” que para um carrinho de compras em cada fila do supermercado para ver qual anda primeiro, sem se importar com as pessoas que estão atrás? A urgência pela imunização é uma variação do entendimento social do social do brasileiro no trânsito ou no supermercado. No dito popular, “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Infelizmente, nada disso é novo na nossa História. No livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz traça um perfil do comportamento do brasileiro de 1500 até hoje. Ao final, constata-se a reincidência de privilégios, favorecimentos e nepotismos ao longo de toda a nossa curta trajetória como brasileiros, desde as Capitanias Hereditárias. A pseudo esperteza que ronda a vacina contra a Covid-19 é apenas a mais recente vertente desse nosso traço cultural.
Não à toa, muitos dos “fura-filas” são políticos de cidades pequenas do Brasil que, confrontados com o constrangimento de terem sido imunizados antes da população à qual servem, se apressaram se apressaram em justificar que o fizeram para “dar o exemplo”. É pena que os políticos só se sintam estimulados a dar o exemplo em situações como a da vacinação. Na série “The Crown”, a Dama de Ferro Margaret Thatcher aparece passando a roupa do marido e cozinhando o jantar para a sua equipe de trabalho. Já em “Borgen” a primeira-ministra da Dinamarca se vê obrigada a aliar a intensa vida política ao preparo do jantar das crianças. E nada disso é um problema para elas. Isso sim é exemplo para o povo.
Um dado curioso sobre os “fura-filas” e que diz muito sobre o nosso tempo é que a maioria dos casos veio a público porque os espertinhos (ou seriam trouxas?) se postaram nas redes sociais tomando a vacina. Vejam bem: eles não foram flagrados em delito por uma câmera oculta. Não. Os próprios imunizados, no afã de exibir a preciosa conquista, jogaram os vídeos e fotos na internet. Porque não basta transgredir, é preciso compartilhar e despertar o sentimento de inveja nos seguidores. Tristes tempos.
No começo da pandemia, falou-se muito sobre a oportunidade que o Universo estava oferecendo de repensarmos nossas vidas e a forma como conduzimos nossas existências. Assim se passaram nove meses. E no entanto, mal começou a vacinação no Brasil e estamos tendo a triste oportunidade de testemunhar que, mesmo diante de um evento global tão doloroso, algumas pessoas não aprenderam nada. Contra a ignorância não há vacina. Ainda.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.
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