segunda-feira, março 01, 2021

Em busca de blindagem, Bolsonaro dobra a presença de militares em cargos do governo


Militares revistaram mochilas de crianças sem presença de conselho tutelar  - Ponte Jornalismo

Charge do Junião (Arquivo Google)

Maiá Menezes, Bernardo Mello e Marlen Couto
O Globo

Em paralelo a crises vividas pelo presidente Jair Bolsonaro, a presença de militares em funções de comando nos ministérios praticamente dobrou nos últimos dois anos. Em setembro de 2020, 342 egressos das Forças Armadas ocupavam cargos comissionados nas maiores faixas de remuneração da máquina federal, em postos de coordenação, diretoria, secretaria ou de ministro. Em janeiro de 2019, início do governo, eram 188 militares nessas funções.

Dois movimentos feitos pelo governo nos últimos dias vão aprofundar a participação: o general Joaquim Silva e Luna foi indicado para a presidência da Petrobras, enquanto o almirante Flávio Rocha deve ser o novo chefe da Secretaria Especial de Comunicação (Secom).

O LEVANTAMENTO – Os dados foram obtidos em levantamento dos gabinetes do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) e atualizados pelo GLOBO. Além do Ministério da Defesa, que habitualmente abriga membros de Exército, Marinha e Aeronáutica, pastas como Saúde e Meio Ambiente registram avanços significativos. Para especialistas, o salto ignora a necessidade de experiência prévia em áreas sensíveis, como o combate à pandemia da Covid-19 e o controle do desmatamento, e expõe a dificuldade de Bolsonaro em articular uma base.

Ao longo das gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer, o percentual de ocupação desses cargos não passou de 2,5%. No governo Bolsonaro, em setembro, havia presença militar em 6,5% dos postos com remuneração bruta entre R$ 6 mil e R$ 16,9 mil. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), há, ao todo, 6,1 mil militares em funções civis no governo federal — em 2017, havia 3 mil.

ORDENS CUMPRIDAS – Para o cientista político Maurício Santoro, da Uerj, a ampliação do espaço de militares, inicialmente ligada à tentativa de criar uma imagem “técnica” do governo, passou a obedecer uma lógica de crises.

— Os militares passaram a assumir as tarefas ideologicamente controversas. Assumiram a Saúde porque o presidente não encontrava médicos dispostos a implementar uma visão negacionista. Entraram no Ibama, onde Bolsonaro tinha problemas com sua política ambiental. Também é o que ocorre, em parte, na Petrobras — diz Santoro.

A mudança na petroleira, após insatisfação de Bolsonaro com o aumento do preço dos combustíveis, é citada pelo cientista político Christian Lynch como exemplo de uso dos militares como “interventores”. Atuar para conter a subida de preços é uma medida simpática aos caminhoneiros, base eleitoral do presidente. “Bolsonaro tenta dar uma impressão ordeira para seu eleitorado, mas o que importa mesmo a ele é que cumpram suas ordens em assuntos que podem afetar sua reeleição. Por isso, se cerca dos militares que compartilham deste projeto político”, afirmou.

NAS ESTATAIS – No conselho de administração da Petrobras, no qual Silva e Luna também deve ingressar, há dois militares indicados por Bolsonaro. A participação também ocorre em estatais como Eletrobras e Correios, nas quais há promessa de privatização — esta última é presidida por um militar.

Após um primeiro ano de governo marcado por quedas de popularidade e pelo avanço de investigações contra a família de Bolsonaro, a Presidência da República teve o maior incremento entre todos os órgãos, com nomeações de 34 militares para postos estratégicos.

O principal deles foi a chefia da Casa Civil, assumida pelo general Braga Netto em fevereiro de 2020. Flávio Rocha, nomeado secretário de Assunto Estratégicos na mesma época, agora é cotado para a Secom. O Ministério do Meio Ambiente, criticado em meio a recordes de queimadas, teve nomeações de militares nas superintendências do Ibama no Amazonas, Amapá, Pará, Mato Grosso do Sul e Rio. A presença cresceu até agosto de 2019 e voltou a subir no início de 2020, na sequência do período mais crítico na Amazônia.

— Em geral, essas pessoas ocupam cargos de altíssimo nível, sem entender sua especialidade. Conforme a crise cresceu, aumentou-se o número de militares na Saúde — exemplificou a deputada Tabata Amaral.

SAÚDE MILITARIZADA – A pasta da Saúde é hoje a terceira área com mais militares no governo, atrás apenas da Defesa e da Presidência. O ministro Eduardo Pazuello, general da ativa, nomeou 21 dos 30 militares nesses postos. Para Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa e professor de Saúde Pública da USP, eles carecem de “domínio total”da área de atuação.

“Há também uma lógica de comando em que falta espaço para o diálogo, sempre essencial na Saúde” — afirma o especialista.

Entre os militares do time de Pazuello, há exemplos de descumprimento de medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a Covid-19. O major da reserva Angelo Martins Denicoli, nomeado no fim de maio como Diretor de Monitoramento e Avaliação do SUS, fez publicações encorajando o uso da cloroquina, remédio sem comprovação científica contra o coronavírus. Denicoli tem formação em Educação Física, MBA em Economia e Gestão e atuou na Comissão de Desportos do Exército.

SEM EXPERIÊNCIA – Pazuello também nomeou três coordenadores distritais de Saúde Indígena que não informam, em seus currículos, experiência na área: o capitão da reserva Gildo Henrique de Azeredo, no Distrito Especial de Saúde Indígena (DSEI) Xavante; o capitão Eloy Ângelo dos Santos Bernal, no DSEI Porto Velho; e Joe Saccenti Junior, coronel da reserva, à frente do DSEI Mato Grosso do Sul.

O trio está subordinado ao secretário especial de Saúde Indígena, o coronel da reserva Robson Santos da Silva, nomeado por Luiz Henrique Mandetta, e que se apresentava como consultor em educação a distância.

“Mais importante até do que a formação é a experiência em gestão na área de Saúde, o que não se vê nesses militares. No caso da Saúde Indígena, não estão conseguindo aplicar todas as doses de vacina destinadas às aldeias. Falta compreensão das políticas públicas” — afirmou o infectologista Julio Croda, ex-diretor de Vigilância em Saúde. (Colaborou Raphaela Ribas)