domingo, abril 26, 2020

Discurso desconexo, contraditório e improvisado por Bolsonaro não convenceu nem aos apoiadores


Charge do Nando Motta (Arquivo do Google)
Tânia Monteiro
Estadão
O presidente Jair Bolsonaro tinha um discurso pronto para rebater didaticamente as acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, na sexta-feira, dia 24. Preferiu ignorar tudo e partir para o improviso, apostando em um tom emocional. Na avaliação de interlocutores do presidente, ele se perdeu nos fatos, disse frases desconexas e acabou agravando a crise política.
Um documento breve, feito sob medida para desmentir “ponto a ponto” aquela espécie de delação premiada de Moro, seis horas antes, estava nas mãos de Bolsonaro. Num dos trechos, o texto citava um telefonema do presidente ao então diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, por volta de 22h20 da quinta-feira.
“A PEDIDO” – Na ocasião, o delegado teria sido informado que sua demissão seria publicada “a pedido” no Diário Oficial do dia seguinte. De acordo com esses relatos, Valeixo concordou com a solução sugerida.
A frase “o senhor não vai me chamar de mentiroso” foi encaixada no discurso justamente por isso. Ao falar de improviso – lendo apenas uma parte do pronunciamento —, Bolsonaro chegou a contar a conversa com Valeixo, mas sem a precisão considerada necessária, como o horário do diálogo, por exemplo.
FALOU DEMAIS – Um dos ministros que ajudaram na preparação do discurso disse que o presidente falou demais. “Não era o combinado. Ele acabou se perdendo”, lamentou o auxiliar, que pediu anonimato.
O objetivo era mostrar que Bolsonaro nunca interviu na Polícia Federal, como disse Moro, e, ainda, que o ex-ministro havia sido desleal. O presidente, no entanto, acabou divagando sobre questões que não tinham qualquer relação com o momento político.
VÍTIMA – Ao se apresentar como vítima do sistema, ele citou, por exemplo, até mesmo um processo enfrentado por sua sogra por alteração de documento, a passagem de uma avó da primeira-dama Michelle pela prisão, por tráfico de drogas, e as aventuras de Renan Jair, seu filho 04.
Para interlocutores do Palácio do Planalto, a divulgação de mensagens trocadas pelo WhatsApp entre Bolsonaro e Moro “sangraram” ainda mais o governo. Na avaliação de ministros, o alerta enviado pelo presidente a Moro, indicando interesse em substituir Valeixo por causa de um inquérito contra aliados bolsonaristas, acabou recrudescendo a crise.
FUGA  – Auxiliares do presidente ouvidos pelo Estado admitiram que a saída do ex-juiz da Lava Jato  provocou fuga de apoiadores que não pertenciam ao chamado bolsonarismo “raiz”. Alguns deles reclamaram, no entanto, da  “deslealdade” de Moro em divulgar conversas privadas, mesmo considerando que o presidente o empurrou para fora do governo. No Planalto o sentimento é o de que houve “traição” por parte de Moro.
Além de lamentar o pronunciamento de improviso feito por Bolsonaro para rebater as acusações de Moro, a equipe do presidente argumenta, no entanto, que tudo piorou após a divulgação das mensagens, na noite de sexta-feira, pelo Jornal Nacional, da TV Globo. O Estado também teve acesso às conversas pelo aplicativo.
ANTAGONISTA – No diálogo virtual, Bolsonaro envia a Moro uma reportagem do site “O Antagonista”, mostrando que a Polícia Federal está “na cola” de “10 ou 12” deputados bolsonaristas que teriam organizado as manifestações do último dia 19, em defesa da intervenção militar.
“Mais um motivo para a troca”, escreveu Bolsonaro, numa referência à saída de Valeixo. Moro respondeu que essa investigação está a cargo do ministro do Supremo Tribunal Alexandre de Moraes, e não da PF.
ALFINETADAS –  Ministros que estavam ao lado de Bolsonaro durante o pronunciamento também viram alfinetadas em quem continua no governo. Chamou a atenção dos presentes o fato de o presidente ter dito e repetido uma queixa que costuma fazer em reuniões ministeriais: as informações não chegam até ele, que precisa ir direto à fonte para saber o que está acontecendo.
A referência foi considerada uma indireta para o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, que tem sob sua batuta a Agência Brasileira de Informações (Abin). Detalhe: a direção da Abin está com Alexandre Ramagem, indicado para assumir o comando da Polícia Federal. As ligações de Bolsonaro para Ramagem são frequentes.
O estrago provocado pela forma como Moro saiu do governo foi comparado, guardadas as proporções,  àquele feito pelo então ministro da Cultura Marcelo Calero, hoje deputado federal. Calero deixou o governo de Michel Temer, em 2016, após divulgar conversas gravadas no gabinete presidencial.
DEMISSÕES – Bolsonaro também sugeriu, naquele pronunciamento, que podem vir outras demissões, o que deu margem para interpretações de que novas crises virão. No Congresso há rumores de que o ministro da Economia, Paulo Guedes – hoje bastante enfraquecido — pode ser a próxima “bola da vez”.
O Planalto continua monitorando a repercussão do confronto entre Bolsonaro e Moro, principalmente nas redes sociais. Nessa guerra de versões, porém, o presidente está em desvantagem, já que a maior parte da população ficou ao lado de Moro, como mostram os últimos levantamentos de opinião.