quarta-feira, junho 26, 2019

Xadrez dos 4 Ms: Moro, Mídia, Milícias e Ministros do STF, por Luis Nassif

De algoz inclemente, Moro caminha para ser o bode expiatório do sistema. Será usado pela mídia para purgar seus pecados, de apoio à desestruturação do país.


Nosso Xadrez ganhou uma complexidade à altura do caos que se instalou no país.
Há quatro personagens diretamente envolvidos com a Lava Jato e, seguramente, fazendo parte do dossiê Intercept: a Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF), Mídia e Milícias (entendido aí, o grupo diretamente ligado à eleição de Bolsonaro).
Todos eles tiveram papel central na era da ignomínia da democracia brasileira, uma mancha na história de cada um, com exceção obviamente das milícias, as vitoriosas.
Em outros tempos, a revisão histórica se daria após o fim do período de exceção, com justiça de transição, obras desnudando os personagens. E, em geral, cobrindo de vergonha apenas os descendentes dos principais personagens.
No entanto, na era da Internet e das redes sociais, o tempo político acelera-se enormemente. A trágica resultante do jogo – a ascensão de Jair Bolsonaro, ameaçando jogar o país na era das trevas – acelerou enormemente o revisionismo. Jornalistas, celebridades, alguns veículos que foram peça central na desmoralização da democracia, trabalham, hoje em dia, em um aggiornamento a jato, menos de dois anos após delatarem adversários, estimularem o ódio, defenderem as ações de exceção da Lava Jato.


Especialmente porque emergiu dessa zona um Brasil do baixo clero, com a opinião se fazendo ao largo da mídia, das análises técnicas e da Bastilha dos poderes constitucionais. Abriram a jaula, liberaram os bárbaros. A recuperação da influência dependerá, portanto, da retomada da legitimidade perdida.
Por outro lado, a recuperação dos princípios democráticos poderia trazer Lula de volta à arena política. Como se equilibrar nesse dilema, entre a cruz e a caldeirinha? Especialmente porque o dossiê do Intercept, se divulgado na integra, revelará:
  • Pecados específicos da operação.
  • Acertos com jornalistas e veículos.
  • Conversas mencionando acertos nas instâncias superiores, podendo chegar até o STF.
É nessa arena que se dará os próximos embates entre os quatro Ms.
Vamos conferir como deverão se comportar, a partir da estratégia elaborada por Glenn Greenwald, da Intercept.

Protagonista 1 – Glenn Greenwald e o Intercept

Glenn se tornou um jornalista premiado internacionalmente não apenas por ser receptador de dossiês explosivos, mas, principalmente, por sua capacidade de viabilizar sua divulgação. No caso Snowden, houve a parceria com The Guardian e outros grandes veículos internacionais, conseguindo contornar até a enorme influência da CIA e do governo norte-americano.
Agora, monta uma tacada de mestre, com a parceria com a Folha de S. Paulo. Com a aliança, blinda-se contra eventuais tentativas de Sérgio Moro, de criminalizar a cobertura, ganha um alto-falante potente, junto a uma bolha extra-Internet.

Definiu claramente o alvo – Sérgio Moro e a Lava Jato -, enfrentou valentemente os grandões, inclusive a Globo, quando tentou criminalizar sua conduta, e os bolsominions que o ameaçaram

Há informações de que apenas 2% do dossiê Snowden foi divulgado, devido a alianças políticas de Greenwald. Não se condene. Fez o que era possível para viabilizar a divulgação de parte dos documentos, que se tornou um clássico do jornalismo contemporâneo. Mas pode explicar eventuais desdobramentos na divulgação do dossiê Intercept, como se analisará a seguir.

Protagonista 2 – mídia

A eleição de Bolsonaro consagrou definitivamente o novo ator das comunicações, as redes sociais, os “influenciadores”, com sua comunicação horizontal, os fake news e o trabalho absolutamente profissional de apoio a Bolsonaro. A única maneira da mídia mainstream recuperar o espaço é retomando os valores imemoriais do jornalismo.
Mas como apagar tantos anos de infâmia, o uso abusivo de fakenews até perder o controle sobre o produto?
Este ano, tem havido um esforço ingente para recuperação da legitimidade. Jornalistas que se lambuzaram até o pescoço atendendo à sede de ódio do período anterior, a legitimação das ilegalidades, a delação dos inimigos, de repente se tornam campeões do lado certo, na grande batalha civilização x selvageria. Sejam bem vindos.
Ao mesmo tempo, na classe média mais moderna, dos jovens de boa cabeça, há um movimento irresistível de adesão às críticas contra Moro, Dallagnoll e operação. Ora, se investir contra o poder constituído engrossou a campanha do impeachment, hoje em dia o poder constituído atende pelo nome de Sérgio Moro, e Lava Jato.
É um movimento que conquistou programas de humor, na própria Globo, corações e mentes da parte mais saudável dos jovens jornalistas – ainda que contidos pelas amarras da redação. E, especialmente, a classe média mais informada, blindada contra os fakenews das redes sociais.
Está em formação a tentativa de criar um pensamento progressista, tipo classe média intelectualizada, em substituição à esquerda tradicional.
Por outro lado, a divulgação de diálogos de procuradores com jornalistas poderá explicitar o óbvio, o fato de a mídia ter endossado todos os arbítrios da Lava Jato.
Nesse sentido, é interessante analisar o comportamento da Globo.
Começou pretendendo criar um Russiagate, para desmoralizar as denúncias. Recebeu reações à altura de Greenwald, valendo-se das redes sociais. Depois, se acalmou, a ponto de produzir uma matéria longa e isenta sobre o tema no último Fantástico, depois de anunciado a parceria Intercept-Folha.
O que a fez mudar de opinião? A constatação de que, indo contra o dossiê, comprometeria ainda mais sua imagem? A garantia de que apenas parte do dossiê seria revelado?
Lembrem-se das contas do HSBC. Quando o jornalista Fernando Rodrigues se viu com os dados na mão, incluindo contas de donos de empresas jornalísticas, amarelou e pediu ajuda à Globo. O jornal alocou bons repórteres, que levantaram alguns casos, para dar alguma satisfação ao distinto público, mas esconderam o restante do material. Até hoje é mantido nas sombras.
Greenwald informou estar fechando aliança com outros veículos. Ainda é cedo para avaliar a profundidade da cobertura do dossiê. Qualquer que seja o nível de concessão, já prestou um serviço inestimável à democracia brasileira.

Protagonista 3 – os milicianos

Jair Bolsonaro está se esbaldando com a agonia de Sérgio Moro. É só comparar sua desenvoltura, depois que se iniciou a descida de Moro aos infernos, com a postura anterior. O aclamado herói nacional, agora, come na sua mão, endossa todos seus esbirros e, a cada dia que passa, reduz seu próprio potencial eleitoral – embora ainda seja bastante popular.
Por outro lado, as tentativas da mídia de limpar as marcas do passado recente, o aumento da grita pela libertação de Lula, fortalecem Bolsonaro junto às suas milícias.
A cada dia que passa, seu governo mais se isola, mais nítidos ficam os sinais de descontrole sobre a economia e o isolamento do país no cenário global. Salva-se apenas pelo antilulismo.
Mas isso é tema para outro xadrez.

Protagonista 4 – os Ministros do Supremo

Hoje confirmou-se a regra suprema, que explicitei em artigo recente (aqui). Todo movimento do Supremo é ensaiado. A banda legalista vota, mas sempre com a garantia de que será minoritária na votação.
Mesmo assim, hoje em dia, o pouco que o dossiê Intercept revelou até agora escancara os desmandos da operação. Seguramente há material muito mais explosivo a caminho, explicitando de forma indelével o caráter político da operação.
Por outro lado, a maioria do Supremo continua firmemente alinhada à tese do sistema, de uma reconstituição da democracia, mas sem Lula. Qual o óbolo a ser pago? Provavelmente o pescoço de Sérgio Moro, depois de garantido que sua condenação não viabilizará politicamente Lula.

Protagonista 5 – Moro

Encerrou sua carreira de Ministro. No cargo, sua reputação será destruída dia a dia por três fenômenos:
  1. O vazamento continuado do dossiê Intercept.
  2. A blindagem ao no. 1 Flávio Bolsonaro e do lugar-tenente Queiroz. Ligado a isso, a impossibilidade de resolver o episódio da morte de Marielle.
  3. Sua total incapacidade de articular qualquer política pública consistente.
Ficando no cargo, gastará toda sua reserva de imagem e se arriscará a ser abandonado por seus seguidores, do MBL às alianças empresariais. Principalmente porque estará permanentemente subordinado a Jair Bolsonaro.
No momento, ainda goza de popularidade, ainda que descendente. Sua visita aos principais departamentos de segurança dos Estados Unidos mostram o desespero e a necessidade de apoio dos padrinhos.

Conclusão

O sistema – entendido como o conjunto de forças que influi nas decisões de poder – já rifou Sérgio Moro.
Confira-se o inexpressivo senador David Alcolumbre, alçado à presidência do Senado por uma articulação de anti-PMDB e partidos bolsonarianos, afirmando que, fosse político, Moro estaria sem cargo e preso. Usou Moro de escada para levantar sua reputação. Na Câmara, a cada dia que passa Rodrigo Maia atua mais e mais como freio às pirações de Bolsonaro. A própria Câmara, valendo-se das revelações do Intercept, ressuscitou a lei anti-abuso das autoridades, uma lei que, ao pé da letra, poderá comprometer até a parte saudável da atuação do Ministério Público Federal.
Ou seja, as duas casas legislativas recuperam seu protagonismo. Enquanto isto, as Forças Armadas dão um sinal forte de impedir a contaminação de sua imagem por Bolsonaro, recusando a promoção de um dos militares da ativa que foi servir o governo.
De algoz inclemente, Moro caminha para ser o bode expiatório do sistema. Será usado pela mídia para purgar seus pecados, de apoio à desestruturação do país. Pelo Congresso, como forma de recuperar seu protagonismo. Pelo Supremo, para mostrar-se defensor das leis e do direito, desde criancinha. Será mantido em formol por Bolsonaro, para mostrar-se solidário com os soldados caídos no campo de batalha.
Daí, começará uma segunda revisão desses tempos bicudos, demonstrando que Moro, Dallagnol, Janot e companheiros eram apenas instrumentos, pessoas sem dimensão intelectual e social, provincianos deslumbrados, brinquedos de um poder maior, daqueles que se usa e se joga fora.
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