Dilma & Cunha, um acordo imoral
Na ânsia de salvar seus mandatos, a presidente da República e o presidente da Câmara costuram um acerto que ficará na história das práticas políticas condenáveis. Mas o conchavo pode acabar em típico abraço de afogados
Marcelo Rocha e Débora Bergamasco
A revelação de ISTOÉ, na última semana, de que a presidente Dilma Rousseff reincidiu nas pedaladas em 2015, conferiu data e hora para o pontapé inicial do impeachment. O rito já estava desenhado pela oposição. Mas uma decisão do STF suspendendo liminarmente a liturgia do processo, ao mesmo tempo em que embaralhou o jogo do afastamento de Dilma, deu mais poder à caneta do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. E Cunha, descolado em se valer dos pontos fracos de aliados e adversários, não perde uma chance dessas. O tabuleiro do xadrez político foi mais uma vez bagunçado. Os movimentos mais bruscos partiram do Planalto. Em tentativas desesperadas de se salvar, o governo da petista já tinha celebrado uma série de acertos espúrios. Rolou na lama do varejo político, ao entregar os anéis e os dedos ao baixo clero do PMDB. Demitiu auxiliares que tinha na mais alta conta durante a desastrada reforma ministerial e alçou ao primeiríssimo escalão do Planalto políticos mais alinhados com o ex-presidente Lula. Quando parecia que não restava mais nada em termos de conchavos para se safar de um processo de impedimento, Dilma passou a costurar um acordo indecente com Cunha, o deputado enrolado com traficâncias na Petrobras que até outro dia era o seu pior adversário. As negociações avançaram depois que o andamento ou não do impeachment passou a depender apenas de uma decisão monocrática do presidente da Câmara.
Assim, de arquiinimigo, o peemedebista virou o malvado favorito de Dilma, do PT e de Lula. O acordão choca o País e chega a corar de vergonha os próprios petistas – cujos padrões éticos já não servem de exemplo para ninguém há muito tempo. Quem afirma não é um político de oposição, mas o ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, do PT. Segundo ele, fazer um acordão com Eduardo Cunha, é “entregar a alma ao diabo”.
O problema chave é que Dilma e Cunha confabulam, treinam jogadas ensaiadas, tentam ganhar tempo, mas nunca estiveram tão fragilizados. O acerto entre ambos é tão precário quanto a decisão do STF de cancelar o rito inicial do impeachment – as liminares concedidas por Teori Zavascki e Rosa Weber ainda podem ser derrubadas durante votação do mérito em plenário. Dilma não tem poderes para garantir a salvação a Cunha. Mas o governo dispõe de meios políticos para evitar a cassação dele no Conselho de Ética. E isso é o melhor dos mundos para Cunha. O que ele mais teme é perder o foro privilegiado e acabar em Curitiba, preso pelas mãos do juiz Sérgio Moro. Quem consegue controlar a agenda da Lava Jato?
Cunha, por seu lado, pode até não deferir o pedido de impeachment da oposição. A presidente, neste caso, ganharia um respiro momentâneo. Nada impede, no entanto, que novas revelações empurrem Dilma ao cadafalso. Nem que um outro presidente da Câmara, em substituição a Cunha, coloque em marcha o processo de impedimento da petista.
Com ou sem o apoio do governo, dificilmente Eduardo Cunha conseguirá sobreviver. Na sexta-feira 16, em parecer enviado ao STF, depois de pedir abertura de novo inquérito, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou que há indícios suficientes de que o dinheiro encontrado nas contas no exterior atribuídas ao deputado, sua mulher Cláudia Cruz e filha Danielle Cunha “são produto do crime”. As contas de Cunha na Suíça receberam depósitos de pelo menos 4,8 milhões de francos suíços e US$ 1,3 milhão, equivalentes a R$ 23,8 milhões. Os documentos apresentados pelo presidente da Câmara para abertura de uma de suas contas levaram o banco Julius Baer a estimar seu patrimônio em mais de 37 vezes do declarado à Justiça Eleitoral.
No final da semana, a PGR também recebeu das autoridades suíças cópias do passaporte, assinaturas e dados pessoais do presidente da Câmara. No material, a Procuradoria identificou uma frota de carros de luxo utilizados por Cunha e família. Entre os veículos, avaliados em R$ 940 mil, há dois Porsches, uma BMW e cinco SUVs.
Foi incluído na denúncia o teor da delação premiada do lobista Fernando Soares, conhecido como Fernando Baiano. Em um dos depoimentos da delação, Baiano disse que entregou entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão em espécie no escritório do presidente da Câmara. O novo revés torna praticamente insustentável a permanência de Cunha no comando da Câmara. E o risco de ele vir a perder o mandato é grande. Na semana passada, um grupo de parlamentares do PSOL e da Rede Sustentabilidade protocolou um pedido de investigação contra o peemedebista por quebra de decoro no Conselho de Ética, assinada por cerca de 50 deputados, 32 deles da bancada do PT. Artífice, ao lado de Lula, do acordão com Cunha, a presidente Dilma também permanece com uma espada pendendo sobre sua cabeça. Na quinta-feira 15, os juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr, integrantes da oposição e dos movimentos de rua protocolaram num cartório de São Paulo um novo pedido de impeachment com base das pedaladas fiscais de 2015 reveladas com exclusividade por ISTOÉ.
Em meio às desconfianças sobre a viabilidade do acordão, em curso até o final da semana, Dilma e Cunha pareciam encarnar uma nova versão da parábola do sapo e do escorpião. No caso, ao longo da travessia do rio, os dois vão se alternando nos papéis de sapo e escorpião. É difícil identificar quem é quem. E qual deles será o primeiro a ferir de morte o parceiro de jornada.
Durante a semana, enquanto o ministro Jaques Wagner encontrava-se com Cunha na Base Aérea de Brasília para perguntar o que ele queria receber em troca para salvar Dilma de um impeachment, a presidente da República entabulava o mais duro discurso desde o início da crise contra o que chamou de “moralistas sem moral”. Sentindo-se certamente estimulada por uma plateia favorável, composta por integrantes da Central Única dos Trabalhadores, a petista chamou a oposição de “golpista” e teve a ousadia de perguntar: “Quem tem força moral, reputação ilibada e biografia limpa suficientes para atacar a minha honra?”. A fala indignada foi amplamente aplaudida pelos sindicalistas.
Acordos na surdina e bravatas públicas encenadas são artes do PT. Antes do encontro de Wagner na Base Aérea, o chefe da Casa Civil já havia estado com Cunha no dia 7 de outubro, na residência oficial de Cunha na tentativa de reestabelecer o diálogo. No início de outubro, conforme apurou ISTOÉ, um outro ministro, de passagem pelo Congresso, foi convidado a se dirigir ao gabinete de Cunha a sós, em uma visita de cortesia - comportamento que em tese faria parte de uma relação natural entre os dois poderes. Durante a conversa, o anfitrião deu sinais de que, ao contrário de posicionamentos anteriores, dessa vez haveria brecha e ele toparia construir pontes com o governo. Governo e Cunha começavam ali a costurar a aliança para valer.
Não foi por falta de tentativa anterior. De maio para cá, enquanto a militância petista detonava o peemedebista nas redes sociais e nas ruas, o governo mandava emissários para seduzir Cunha e deter seus movimentos pelo impeachment. Mas o peemedebista, ao não ceder aos encantos das benesses oficiais, não fazia apenas charme. Seus movimentos foram friamente calculados. Profundo conhecedor dos meandros políticos, cercou o governo por todos os lados. Indicou aliados para CPIs que podiam constranger o Planalto, entoou um discurso de rompimento sem volta com o PT, descartou participar da reforma ministerial e insinuou o quanto pôde que prosseguiria com o processo de afastamento de Dilma. Até conseguir enredar o governo na teia que ele próprio teceu.
Assim como Dilma, Eduardo Cunha quer manter o cargo e salvar a própria pele. Ele espera do governo e de sua tropa de choque na Câmara ajuda para barrar no Conselho de Ética um eventual processo de sua cassação. Na atual circunstância política, e com a Lava Jato a todo vapor, é muito difícil que Cunha escape. Mas o Planalto já hipotecou apoio. Por exemplo, na semana passada, Dilma aceitou uma sugestão para empregar na superintendência do Iphan da Bahia uma pessoa indicada pelo deputado José Carlos Araújo (PSD-BA). E o que isso guardaria relação com Cunha? Araújo é nada menos do que o presidente do colegiado que vai decidir a sorte do peemedebista: o Conselho de Ética. O deputado aguardava a confirmação da vaga para seu apadrinhado havia cinco meses. Na avaliação dos articuladores políticos do governo, o “agrado” fará com que o parlamentar baiano passe a ter “boa vontade” com os interesses governistas. Se a orientação for para salvar Cunha, Araújo não hesitará, apostam auxiliares palacianos.
Na ótica duramente pragmática do presidente da Câmara, a oposição teria bem menos a oferecer. A interlocutores, Cunha disse que a oposição andou algumas casas para trás em seu conceito, o que pode ser considerado um elogio. No fim de semana do feriado, sob a avalanche de informações das investigações suíças, os partidos de oposição - PSDB, DEM, PPS e PSB - emitiram uma nota defendendo o afastamento de Cunha da Presidência da Câmara. Cunha retomou as atividades legislativas na terça-feira 13 furioso. “‘Se eu derrubo Dilma agora, no dia seguinte, vocês me derrubam”, afirmou o peemedebista em encontro com oposicionistas na residência oficial da presidência da Casa. O recado estava dado.
Numa outra ponta, percebendo a relação de Cunha com a oposição azedar, Lula entrava em campo para garantir o enlace com o governo. Na tarde de quinta-feira 15, o ex-presidente se reuniu com deputados petistas e, em tom inflamados, discorreu sobre a importância de não haver rachas internos no apoio ao presidente da Câmara. Orientado por Lula, o presidente do PT, Rui Falcão, reforçou as articulações para conter a adesão de correligionários ao “fora, Cunha”.
Ciente dos movimentos de aproximação do governo, em uma conversa com um ministro próximo de Dilma, o presidente da Câmara baixou as cartas. Deixou bem claro que poderia segurar o tempo que fosse a apreciação de pedidos de impedimento contra Dilma. Em contrapartida, gostaria de ver atendidas algumas de suas exigências. “Nunca vi reforma ministerial sem que se mexa na Justiça e na Fazenda”, verbalizou. A crítica ao ministro Joaquim Levy, até semana passada, ainda não havia sido bem compreendida por interlocutores da presidente. Mas o plano de derrubar o ministro José Eduardo Cardozo do comando da Justiça é real. A ideia de Cunha é pressionar pela substituição Cardozo pelo vice-presidente da República, Michel Temer, ideia já acalentada pelo ex-presidente Lula. Dessa forma, calcula o parlamentar, o novo chefe da pasta poderia exercer maior controle sobre a Polícia Federal, ajudar a segurar o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e blindar petistas e peemedebistas contra vazamentos das investigações da Lava Jato. Integrantes do governo chegaram a considerar a hipótese. Mas Dilma ainda resiste.
Cunha tem o que oferecer em troca. Ele controla as três Comissões Parlamentares de Inquéritos com potencial para dar problemas ao governo e ao PT -- Petrobras, BNDES e Fundos de Pensão. Existe na CPI da Petrobras, por exemplo, requerimento para ouvir Paulo Okamoto, presidente do Instituto Lula. A entidade aparece na contabilidade das empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato. Depende apenas de ser agendada, prerrogativa do presidente da CPI, Hugo Motta (PMDB-PB), pupilo de Cunha. A oposição investe contra Lula e seus familiares na CPI do BNDES, mas, a depender do PMDB de Cunha, pode ser encerrada sem uma prorrogação e sem ter produzido nada de relevante. Ao contrário do governo e do cada vez mais enrolado Eduardo Cunha, os oposicionistas não precisam de uma estratégia para sobreviver. Mas já planejam um plano “B” para não sepultar as chances de levar à frente a deposição da chefe do Executivo. Consumado o acordão Cunha-PT, não restará outra alternativa ao PSDB, DEM e PPS senão trabalhar para a eleição de um novo presidente da Câmara de reputação ilibada. Alguém capaz de entender a grandeza do cargo, sem se curvar a interesses convenientes e mesquinhos. Nesta empreitada, não lhes faltarão apoio nas ruas. Para o dia 19, já está prevista uma mobilização no Largo da Batata em São Paulo. Pode ser o embrião de uma nova mega manifestação. Contra estes, não há acordão que resista