domingo, abril 25, 2010

Na terra da cachaça, beber não é lei

Pesquisa derruba mito de que brasileiro bebe sem medida. Abstinência chega a quase metade da população consultada

Diego Ribeiro

Quase metade da população brasileira não consome bebida alcoólica. Essa é a conclusão de um novo estudo publicado pela Universi­dade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre o padrão do consumo de bebida alcoólica no Brasil. Um to­­tal de 48% dos entrevistados com mais de 18 anos não consome bebida alcoólica ou bebe menos de uma vez ao ano. Comparado a ou­­­tros países, o número im­­pressiona. Os não bebedores são apenas entre 10% e 15% da população da maioria dos países europeus e dos Estados Unidos. Na pesquisa, foram ouvidas 3.007 pessoas em 147 municípios brasileiros entre novembro de 2005 e abril de 2006. Entre os entrevistados, 661 eram adolescentes.

“É a primeira vez que se consegue descrever o perfil do brasileiro que bebe. O estudo desmistifica a ideia de que no Brasil todo mundo bebe”, afirma o coordenador da pesquisa, Ronaldo Laranjeira, professor titular de psiquiatria da Unifesp e diretor do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas.

Para ele, um dos motivos de a taxa de abstinência ser comparativamente alta entre os brasileiros é o fato de o Brasil ser uma nação bastante religiosa. “A religião é um fator de proteção contra o álcool”, explica. Cerca de 25% da população brasileira é formada por evangélicos, razão que reflete no número de pessoas que não bebem, diz o pesquisador. “E um quarto dos abstêmios pode ser explicado também pela tradição das famílias, o costume de não beber.” Nos Estados Unidos, 51,3% dos cerca de 300 milhões de habitantes são protestantes, segundo relatório de 2009, publicado no site Agência Central de Inteligência do país.

O pesquisador alerta, po­­­rém, que o número alto de pessoas que não bebem pode representar um es­­­paço para as empresas de bebida alcoólica ampliarem seu mercado. “Temos de continuar protegendo essa população abstinente”, ressalta. Na opinião dele, reforçar e am­­­pliar as políticas públicas são im­­­portantes para aumentar e manter a população longe da bebida.

Entre as regiões, o Sul é a com a menor taxa de abstinência, de 35%, seguida pelo Centro-Oeste (47%), Nordeste (50%), Sudeste (50%) e Norte (54%). Segundo La­­­ranjeira, o clima e os hábitos dos eu­­­­ropeus influenciam de forma mais contundente na região. A pesquisa apontou também que os homens bebem mais. Quase 60% dos abstêmios são do sexo feminino.

O trauma da embriaguez

Raphael Berberi, 28 anos, nunca bebe. A morte de seu pai, ocasionada por uma cirrose hepática aos 36 anos, deixou um trauma e a decisão de que nunca consumiria bebida alcoólica. Jogador de vôlei de praia, Raphael não deixa de se divertir por isso.

“Meus amigos sempre souberam que não bebo e respeitam. Mas sempre tem alguém que insiste em oferecer, mas nego”, comenta. O atleta não é contra quem bebe, mas contra quem consome em excesso. “Vejo muito esse problema da bebida com as relações sociais. Sempre tem aquele que fica alterado e acaba arrumando uma briga.”

Outro lado

“Não me lembro de sair de casa para ficar bêbado, mas nunca voltava sóbrio.” As palavras de João (nome fictício), 64 anos, aposentado, são recordações de anos sob domínio da bebida alcoólica. A primeira vez em que ficou embriagado foi aos 14 anos. Nos Alcoólicos Anônimos (AA) desde 1980, João resistiu e negou seu problema durante muitos anos. “Comecei a beber para perder a timidez”, explica. O jovem João bebia para conhecer garotas, segundo ele próprio. E preferia a pinga. “Meu poder aquisitivo não permitia consumir outra coisa.”

A cachaça era paga com o dinheiro do mês seguinte. Gastava metade do salário em bebida. Em alguns momentos, tomava todo o salário. Em 1977, começou o período mais negro do alcoolismo de João. Ele perdeu mais de dez em­­­pregos. “E fui internado 15 vezes.”

O sacrifício para resgatar sua vida valeu a pena. Ele é integrante de um dos 91 grupos da capital. Em 1983, conseguiu emprego. No próximo dia 3 de setembro, ele completa 30 anos sem álcool.

Serviço:

Alcoólicos Anônimos – (41) 3222-2422.

Renda

A ideia de que a falta de dinheiro está relacionada com o consumo do álcool é um mito que a pesquisa também derrubou. Segundo as informações de Laranjeiras, as classes D e E, de menor poder aquisitivo, têm as maiores taxas de abstinência da pesquisa, de 56% e 59%, respectivamente. “É simples. Quem tem mais dinheiro bebe mais. Estamos acostumados a ver as consequências do consumo em excesso nos mais pobres porque eles têm menos condições de se cuidar”, explica.

Adolescência

O estudo mostra ainda que 66% dos 661 adolescentes entrevistados nunca beberam ou bebem pelo menos uma vez ao ano. Embora o número pareça alto, é preciso estar atento a este grupo. De acordo com Laranjeira, os adolescentes mudam de padrão de consumo rapidamente.

Por isso, a preocupação com a próxima geração foi um dos principais focos da pesquisa, que mostrou que 9% dos adolescentes ouvidos bebem mais do que uma vez por semana. Deste total, quase 50% bebeu mais do que três doses por situação habitual e cerca de um terço deles tomou cinco doses ou mais.
Mesmo que a lei brasileira proíba o consumo de bebida alcoólica entre os adolescentes, o estudo apresentou um padrão grave de uso entre os jovens de 14 a 17 anos, colocado pelo pesquisador como “beber em binge”. “Enquanto as mulheres adultas estão protegidas do álcool, as me­­­ninas estão bebendo tanto quan­­­­to os meninos”, relata o pesquisador.

Direção e álcool ainda é hábito

Aliar álcool e direção tem efeitos devastadores na vida dos envolvidos em acidentes provocados pela mistura perigosa. Um exemplo foi o acidente envolvendo o ex-deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, em maio do ano passado. Dois jovens morreram quando o Volkswagen Passat do ex-deputado bateu contra um Honda Fit, no bairro Mossunguê, em Curitiba. Carli Filho havia consumido bebida alcoólica pouco antes, em um restaurante da região.

O ex-deputado representa uma fatia da população entrevistada que bebe antes de dirigir. Segundo a pesquisa, 23,7% afirmam ter ingerido duas ou mais doses e dirigido na ocasião. Carli foi flagrado com 7,8 decigramas de álcool no sangue – taxa acima das seis decigramas que é considerada crime e pode resultar em prisão em flagrante do motorista. O estudo ainda mostra que 19% dos pesquisados dizem ter bebido e dirigido algumas vezes, e 17,6% relatam jamais terem cometido a imprudência.

De acordo com o pesquisador Ronaldo Laranjeira, o problema está relacionado diretamente com o hábito de beber em bar ou balada. “No Brasil, a maior parte do consumo do álcool ocorre fora de casa e não está relacionado às refeições”, explica o psiquiatra.

Esse perfil do bebedor brasileiro é o mais perigoso. Segundo o pesquisador, sair para beber é o padrão mais relacionado com os problemas ocasionados pela bebida, como acidentes e violência. “Não é que as pessoas bebem em pequenas quantidades antes de dirigir, mas sim que bebem acima do limite legal, aumentando o risco de acidentes”, alerta a conclusão do estudo.

Violência

Segundo a Delegacia da Mulher de Curitiba, 90% dos flagrantes de crimes contra mulher realizados pela unidade têm relação direta com o uso de álcool pelo agressor. O consumo em excesso de bebida é um catalisador da violência, diz a delegada Daniela Andrade. “Nos domingos, o número de flagrantes é maior. É o dia que o agressor geralmente está em casa e bebe”, explica. A policial orienta que as mulheres não fiquem perto de seus companheiros quando houver uma discussão em que eles estejam alterados pelo consumo de bebida alcoólica.

Além da violência doméstica, crimes como homicídio também ocorrem em razão do uso do álcool. Na terça-feira, no Jardim Gabineto, na Cidade Industrial de Curitiba, um homem, com cerca de 50 anos, matou a pauladas e pedradas um colega. O assassinato ocorreu em razão de uma disputa por uma garrafa de cachaça. “Grande parte dos homicídios está relacionada com drogas, mas há os crimes com a motivação do álcool”, comenta a titular da delegacia de Homicídios, Vanessa Alice.

Fonte: Gazeta do Povo