Quando assumiu a Vara das Execuções Criminais de Contagem, em 2005, o juiz Livingsthon Machado deparou-se com uma situação de verdadeiro descalabro: cadeias sem condições mínimas de higiene e superlotadas com presos tanto já condenados como ainda sendo processados. Tudo ilegal.
No afã de solucionar esse problema, cometeu um gravíssimo erro: resolveu aplicar a lei. Oficiou pra todo lado; promoveu reuniões; motivou pessoas; conseguiu até articular União, estado e município em torno de um projeto de construção de novos presídios e cadeias na cidade. Quando tudo parecia pronto, o governador Aécio Neves roeu a corda e voltou-se à estaca zero.
Foi então que o Ministério Público requereu a transferência de 16 presos ilegalmente encarcerados em um Distrito Policial da cidade. Livingsthon determinou um prazo para que a secretaria encarregada fizesse a transferência. O prazo esgotou-se sem qualquer providência. Para cumprir a Constituição brasileira, Livingsthon determinou a soltura dos presos.
O fato foi noticiado na imprensa, provocando a ira do governador Aécio Neves, que mandou a Procuradoria do Estado requerer a revogação da ordem. Incontinenti, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais acatou o pedido. Mas, quando a ordem revogatória chegou, os presos já estavam livres.
Duas semanas depois, Livingsthon determinou a soltura de outros 39 presos que aguardavam há quatro anos transferência da cadeia de Contagem para uma das penitenciárias do estado. Nessa cadeia, com capacidade para 16 presos, 148 detentos se amontoavam. Conforme vistoria da Vigilância Sanitária, havia tuberculosos, aidéticos, pessoas com hepatite e com doenças venéreas.
Diante dessa segunda decisão, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais resolveu agir com rigor. Para resolver o problema dos presos? Não, pasmem! Para punir o juiz! Ele foi afastado da Vara de Execuções, sem sequer ser ouvido.
Livingsthon recorreu dessa punição. Primeiro para o próprio Tribunal; depois para o STJ; em seguida para o CNJ; e finalmente para o Supremo Tribunal Federal, onde o processo se encontra na mesa do ministro Menezes Direito – o mesmo que enviou uma carta à TAM pedindo "up-grade" para primeira classe a um filho que viajava ao exterior. Desde o primeiro recurso até hoje decorreram 4 anos.
No começo de 2009, o Tribunal resolveu pôr panos quentes no caso e removeu o juiz para uma Vara Cível. Livingsthon recusou, pois isto poderia parecer admissão de culpa. Diante disso, o Tribunal resolveu aposentá-lo compulsoriamente. Livingsthon, porém, não aceitou a solução conciliatória - desistiu da carreira, abrindo com esse gesto mão dos proventos que poderia auferir sem trabalhar. Demitiu-se, porque via "a Constituição ser rasgada".
O caso é emblemático. Mostra, não apenas o descalabro da Justiça brasileira, mas a terrível crise moral que se abate sobre as mais altas autoridades da República. Como é possível que não tenha surgido, nos quatro anos em que o caso perambulou pelas instâncias do Judiciário, alguém que se levantasse contra a injustiça cometida contra o juiz, o descaso da lei, e a violência contra os direitos constitucionais dos presos?
A maior prova dessa insensibilidade moral está estampada ao lado deste editorial. Observem a fotografia cedida pela Folha de São Paulo e constante do blog do jornalista Fred Vasconcelos, que assina excelente reportagem sobre o episódio: os presos ali amontoados estão no mesmo xadrez do Distrito Policial de Contagem! Detalhe: a foto é de 2008, três anos após aquele incidente!
Um regime que chegou a esse ponto de degenerescência não tem mais como ser reformado. Precisa ser substituído. Somente gestos como o do juiz Livingsthon poderão fazer essa revolução no Brasil.
Fonte: Correio da Cidadania