quinta-feira, maio 28, 2009

A CPI da Petrobras

por Ovídio Rocha Barros Sandoval

Assiste-se à discussão aberta no Senado Federal sobre a instalação da denominada “CPI DA PETROBRÁS”. Pelas notícias colhidas, já foi alcançado o número regimental de assinaturas de Senadores para possibilitar a sua criação e houve a leitura do requerimento em Plenário.


É importante esclarecer, mais uma vez, que o inquérito parlamentar se constitui em extraordinário instituto jurídico-constitucional no Estado Democrático de Direito. A função de controle e fiscalização exercida pela Comissão, como “longa manus” da Casa Legislativa, quanto aos atos de governo, é garantia de eficiência na construção de uma sociedade mais justa e menos comprometida com os desvios dos detentores do Poder.

Não se pode, porém, esquecer-se que este poderoso instrumento democrático se encontra jungido aos limites constitucionais e legais.

As funções exercidas pelas CPIs são limitadas e temporárias.

Pela força do disposto no art. 58, § 3º da Constituição, a CPI só poderá investigar fato determinado. Não poderá ir além, sob pena de contrariar o texto constitucional. O fato determinado deverá estar, ainda, entre as matérias sobre as quais a Casa poderá exercer sua função legislativa.

Ademais, a idéia de um poder geral do Congresso de investigar sobre o fato determinado haverá de estar atrelado ao propósito de legislar. Se não estiver atrelado ao propósito de legislar atenta, obviamente, contra a máxima elaborada de que o poder de investigar, que é acessório, assuma a característica de função principal do Congresso.

Cumpre salientar, ainda, que na prática constitucional dos Estados Unidos da América ficou assente que a Comissão Parlamentar de Inquérito não tem poder geral de investigação sobre negócios privados dos cidadãos, levando o eminente Ministro Paulo Brossard a observar que “nenhuma investigação é um fim em si mesmo e toda investigação deve guardar uma relação com alguma tarefa ou atribuição do legislativo, donde decorre que assuntos puramente privados não se prestam a investigações parlamentares”.

Pois bem, uma primeira observação precisa ser feita, a Petrobrás não é uma pessoa jurídica de Direto Público, muito menos um órgão ou instituição do Estado. É uma sociedade de economia mista e, como tal, é uma pessoa jurídica de Direito Privado, consoante o disposto no art. 173, §1º, II, da Constituição. O eminente professor Uadi Lammêgo Bulos observa: ao dizer o legislador constituinte “que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho do homem e na livre iniciativa, significa que o constituinte prestigiou uma economia de mercado de cunho capitalista” e, assim, “seria inadmissível colocar as pessoas jurídicas de Direito Privado sujeitas à fiscalização das CPIs”.

O ilustre professor Fábio Konder Comparato, ao tratar da intervenção do Estado no domínio econômico, ensina: “ingressando como agente do mercado para suprir as deficiências da iniciativa particular, o Estado assume o “status” de pessoa privada e submete-se ao regime geral do Direito Privado”, enquanto o professor Celso Antônio Bandeira de Mello observa: “Hoje, é praticamente pacífico que as sociedades mistas são entidades privadas” e “se submetem às regras ordinárias das sociedades anônimas”; para o saudoso professor Hely Lopes Meirelles “a sociedade de economia mista ostenta a estrutura e funcionamento de empresa particular porque isto se constitui sua própria razão de ser”.

Portanto, a sociedade de economia mista não é órgão da Administração; seus bens não são públicos; sua atuação não caracteriza atos ou contratos administrativos; não se submete ela, no exercício de suas atividades, às normas de Direito Público.

O Superior Tribunal de Justiça pelo voto condutor do ilustre Ministro Demócrito Reinaldo, teve a oportunidade de decidir que “as sociedades de economia mista devem observar por inteiro, o regime a que estão submetidas as empresas privadas” e “não cabe, no Estado de Direito em que nos encontramos interpretação no sentido de enxergar nas empresas estatais, entidades anfíbias capazes de viver, tanto na seara do Direito Público, quanto nos limites do direito privado”.

Diante disso, tenho para mim que a Petrobrás, como sociedade de economia mista e, consequentemente, como pessoa jurídica de direito privado, não poderá ter os seus negócios jurídicos investigados por uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Se irregularidades, porventura, aconteceram, deverão ser investigadas pelos órgãos públicos competentes: pela Polícia e pelo Poder Judiciário, acaso provocado.

De outra parte, pelas notícias colhidas na Imprensa, não existe um único fato determinado a ser investigado, mas diversos fatos. O requerimento é genérico o suficiente para permitir investigação em “quase tudo” que os membros de comissão entenderem de investigar. Estará aberta a devassa nos negócios jurídicos de uma empresa sujeita ao regime do Direito Privado e que se encontra jungida às regras do mercado capitalista.

Quando a Constituição impõe seja a CPI instalada para apurar um fato determinado, como observa com rara felicidade Saulo Ramos, não está a possibilitar “dois ou três fatos, ainda que todos sejam determinados, mesmo porque, em lógica jurídica a determinação de mais de um fato torna todos indeterminados. E se os regimentos internos limitaram o número de comissões funcionando simultaneamente, torna-se igualmente claro que nenhuma delas pode ter mais do que um fato a ser apurado. Não fosse assim, a reunião de dez fatos a serem apurados por uma única comissão seria manifesta fraude ao limite regimental, pois estaria embutido o funcionamento de nove outras comissões”.

Em meu livro “CPI ao Pé da Letra” dediquei um estudo específico sobre os absurdos praticados na criação e no funcionamento das Comissões. Recordei observação feita pelo eminente professor Ives Gandra da Silva Martins de “que é gerado um festival de CPIs, que dão visibilidade na mídia aos parlamentares que delas participam e que não conseguem marcar o triste fato de que não cumprem sua verdadeira função constitucional que é a de legislar” e não se pode olvidar a inteligente observação feita pelo eminente Ministro Saulo Ramos, como Consultor-Geral da República de que no Brasil “é muito mais comum a inconstitucionalidade na aplicação da lei do que a inconstitucionalidade da própria lei. Sofremos daquela perigosa distorção, de que falava sempre Pontes de Miranda, o mal da meiaciência praticada pelos que leram apenas os primeiros dez volumes de uma biblioteca de mil livros”.

Continua presente e atual a observação feita pelo ilustre Deputado paraibano Samuel Duarte, com inegável propriedade, de que transformar a CPI “em arma política, de pura conveniência partidária de um grupo, de uma parcialidade sem o objetivo de resguardar a legalidade, a moral administrativa ou os legítimos interesses do Tesouro, importa em fraude à Constituição”.

Por fim, não podemos esquecer que, em França, os absurdos praticados pelas Comissões Parlamentares de Inquérito foram constantes como relembram Alcino Pinto Falcão e José Aguiar Dias: “Na França os absurdos foram tremendos, pois a publicidade é um incentivo à falta de escrúpulo de alguns parlamentares, esquecidos do fim útil e nobre das comissões e que, para interesse próprio (que mascaram com o público), usam das comissões para fins demagógicos, arranjarem novos eleitores e levarem à desonra os inimigos políticos”. Por isso, a lei francesa n. 53-1215 de 8.12.1953, “determina o caráter sigiloso dos trabalhos das comissões até o relatório final, com sanções penais pela violação do segredo ou do sigilo”.


Sobre o autor

Ovídio Rocha Barros Sandoval
Advogado. Juiz de Direito aposentado. Ex-professor Assistente de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Ex-Juiz assessor da Presidência do TJSP nas gestões dos Desembargadores Marcos Nogueira Garcez e Nereu César de Moraes e Autor do livro “CPI ao Pé da Letra”

Revista Jus Vigilantibus,