Wilson Figueiredo
jornalista
Ninguém mais perde tempo em atribuir a Lula, mordendo a língua, a responsabilidade pelo que vem acontecendo ao Brasil. Nada pega de muda na sua biografia. O presidente não quer saber de observações contrárias à alta avaliação que faz a seu próprio respeito. Dá como feitas obras ainda no papel e saca pesado contra a História que lhe abriu crédito sem teto. Lula usa cartão corporativo para quitar-se, no presente e no passado, do país que não tira os olhos do futuro.
O brasileiro já parece disposto a esperar o resultado das revelações escabrosas para falar. Foi mesmo a situação geral que elegeu o presidente Lula. O Brasil atual só pode ser obra de vários governos. Falta saber quando foi que o Brasil começou a retroagir moralmente. Vai ver que desde as caravelas. Já está claro que o passado não absolve, mas esquece. O futuro, já dizia Santo Agostinho, tem o inconveniente de estar sempre atrasado e, quando se procura por ele, já vai longe. O Brasil continua esperando. Se o Brasil não deve a Lula o espetáculo de baixo nível ético, não pode desconhecer que o elegeu. É natural a má vontade. O esgotamento da social-democracia no governo anterior, além da reeleição, criou condições para Lula abrir espaço social à cidadania mínima. Elas por elas. E assim se conta como Lula deu a mão àquelas faixas sociais batizadas com letras do alfabeto mas ainda sem acesso à educação e à saúde públicas. Com o Bolsa Família e outras fontes de sobrevivência mínima, o presidente fez o seu nicho na História do Brasil. Ainda ativou a Polícia Federal e tirou o pão da boca da oposição.
Já que o show não pode parar e a ação policial muito menos, já que não foi Lula quem incrementou as roubalheiras, nada o impede de fazer o levantamento das responsabilidades alheias, mas sem a tradicional separação de bons e maus ladrões. "Ou todos comem ou haja moralidade" é a retumbante máxima republicana que continua válida, apesar da omissão do nome do seu autor, o marechal Floriano Peixoto, de quem Lula poderia aproveitar lições contundentes. Diante de um pedido de autorização para pagamento de obras públicas, o marechal estranhou o custo e exigiu explicações. Teve-as, mas não se satisfez e, como era hora de pagar, não perdeu tempo. Antes da assinatura, Floriano lavrou de próprio punho o despacho com a ressalva: "Pague-se, mas que ladrões". Lula bem poderia valer-se do precedente histórico e homenagear o consolidador da República quando aqui chegar a IV Frota americana. Diante da fermentação política que azedava os sonhos republicanos, o embaixador britânico sondou o governo sobre como seria recebido o desembarque de marinheiros ingleses para ajudar a manter a ordem pública. O presidente Floriano não se fez de rogado: "a bala".
Desde que o governo Lula ficou mais visível que previsível, não custa procurar aonde foi parar a idéia do terceiro mandato recusado com firmeza digna de desconfiança. A candidatura da ministra Dilma Rousseff é auto-insustentável. Se o presidente se render ao imprevisível, a ministra será a primeira a reconhecer que a prioridade é de quem a tem, ou seja, dele – Lula. Nada impede os fatos de tomarem outro rumo sem consultá-lo. É por aí que o terceiro mandato se esconde numa situação que comporta variantes de todos os matizes.
No seu tempo, Machado virou do avesso aquele ditado popular que reconforta os pobres com a ressalva e a rima de que é a ocasião que faz o ladrão. Sempre atento à natureza humana, ele considerava que o ladrão nasce feito. O dote vem do berço e a ocasião é fortuita, seja pobre, rico ou remediado o ladrão. Por ser mais antiga do que a teoria, a desigualdade social na questão do roubo nem foi abordada por Rousseau. Aliás, ladrão paira acima da ocasião, que não apenas propicia o roubo como beneficia o ladrão, e ainda sobra para os advogados.
A rigor, nem a ocasião garante o ladrão, depois que a quebra da trinca dos sigilos mais produtivos – telefônico, fiscal e bancário – passou a dar testemunho.
Fonte: JB Online