sábado, abril 05, 2008

Pretensão de correção - Político com processo não deveria poder se candidatar

por George Marmelstein Lima
Existe uma intensa polêmica, ainda em aberto na jurisprudência, sobre a possibilidade de a Justiça Eleitoral indeferir o registro da candidatura de um político com base na existência de indícios da prática de crimes pelo pré-candidato, ainda que não haja qualquer sentença penal condenatória transitada em julgado.
No julgamento do chamado caso Eurico Miranda, o Tribunal Superior Eleitoral, por 4 a 3, entendeu que a Justiça Eleitoral não poderia indeferir o registro da candidatura do conhecido cartola do Vasco da Gama, já que os diversos processos criminais instaurados contra ele ainda não teriam transitado em julgado (TSE, RO 1.069/RJ, rel. Min. Marcelo Ribeiro, j. 20/9/2006).
O julgamento em favor de Eurico Miranda não significa dizer que a questão está pacificada. Pelo contrário. Basta que um único ministro do TSE mude de posicionamento para que o quadro se inverta. E como a jurisprudência eleitoral é bastante dinâmica, a discussão torna-se mais atual do que nunca, sobretudo diante das conseqüências desastrosas que esse entendimento resultou nas eleições de 2006 quando pessoas sem o mínimo de idoneidade ética obtiveram uma cadeira no parlamento.
Diante disso, analisarei a questão, apresentando novos argumentos capazes de justificar uma mudança de posicionamento no entendimento firmado no “Caso Eurico Miranda”.
Parto do princípio de que nenhum cidadão minimamente consciente do significado de democracia e de república se conforma com o fato de haver no parlamento políticos totalmente inescrupulosos defendendo interesses ocultos "em nome do povo".
Não é razoável que uma pessoa sobre a qual pairam sérias dúvidas quanto à sua honestidade possa se candidatar a um cargo político. Esse sentimento de indignação se intensifica ainda mais quando a "suspeita" é de desvio de verbas públicas que, no final das contas, irá servir justamente para financiar a campanha eleitoral desse político! E para reforçar a revolta popular, esses mesmos políticos ainda têm a cara de pau de confessarem que receberam verbas ilícitas sob a esfarrapada desculpa de quitarem suas "dívidas de campanha". Ou seja: é um atestado indiscutível de que a sua vitória eleitoral foi uma fraude e que democracia representativa, pelo menos nessa ótica, é uma farsa e que se continuar assim a tendência é piorar...
Situação igualmente indignante é a dos políticos que são bandidos da pior espécie, ainda que não existam condenações transitadas em julgado. Quando um sujeito como um "Hildebrando Pascoal", que esquartejava suas vítimas, consegue uma cadeira no parlamento federal, isso significa que alguma coisa não está cheirando bem nesse processo eleitoral tupiniquim.
A idéia de que o político não apenas deve ser honesto, mas, sobretudo, deve parecer honesto, reflete bem essa intuição de que a existência de inquéritos e processos criminais pesa sim contra a candidatura.
Pois bem. Mas por enquanto ainda estou numa fase de mera "especulação intuitiva". É algo ainda muito sensitivo, dentro do "imaginário popular", inconsciente, meio irracional mesmo. É o que se pode chamar de “feeling”.
Esse “feeling” não tem qualquer importância para o direito se não encontrar um respaldo no ordenamento jurídico. A finalidade do direito não é apenas satisfazer os anseios de justiça do povo, custe o que custar. A finalidade do direito é fazer justiça com legitimidade. E a legitimidade deve ter como base principal o ordenamento jurídico constitucional.
Por isso, é preciso submeter esse “feeling” a um pesado teste de consistência, procurando encontrar, no sistema normativo, qualquer fundamento que possa derrubá-lo. Se não houver compatibilidade entre esse sentimento de justiça e a Constituição, então ele não merece prevalecer.
Basicamente, existem quatro argumentos principais utilizados para defender que a mera existência de processos criminais ainda não concluídos não podem servir como base para o indeferimento de registro de candidatos a cargos políticos: (a) o princípio da presunção de não-culpabilidade; (b) a ausência de previsão legal ou constitucional contemplando essa hipótese de inelegibilidade; (c) a possibilidade de uso político da Justiça Criminal; (d) a capacidade do povo de censurar “nas urnas” os políticos desonestos.
Por isso, vou dividir a análise em quatro partes, começando com o princípio da presunção de não-culpabilidade.
Princípio da Presunção de Não-Culpabilidade
Um dos pilares do Estado Democrático do Direito é o princípio segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, inc. LVII, da CF/88). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, também contemplou esse valor como uma idéia universal ao dizer no artigo 11 que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. Por sua vez, o Pacto Internacional de San Jose da Costa Rica, de 1966, estabelece que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.
O princípio da presunção de não-culpabilidade é, sem dúvida, um argumento forte contra o indeferimento da candidatura de políticos suspeitos, mas que, a meu ver, pode ser facilmente vencido.
Esse princípio, por mais importante que seja (e é mesmo!), não tem essa força de “fingir que nada está acontecendo” durante o período em que uma pessoa está sendo investigada ou processada criminalmente. A existência de razoável suspeita da prática de crime pode ser sim invocada para limitar determinados direitos fundamentais, embora sempre excepcionalmente.
Imagine, por exemplo, a seguinte situação hipotética: um respeitável senhor de 40 anos de idade, bem conceituado perante a comunidade, é preso em flagrante pela prática de pedofilia. Em seu computador pessoal, a polícia encontrou inúmeras fotos em que esse senhor participava de orgias sexuais envolvendo crianças e adolescentes. Por ironias do processo penal, foi reconhecido o seu direito de responder ao processo criminal em liberdade.
Digamos que, nesse ínterim, ainda sem qualquer denúncia recebida, esse senhor resolve participar de um concurso público para o cargo de professor de uma escola infantil e consegue ser aprovado em primeiro lugar. Você, sendo o diretor da escola, daria posse a esse sujeito?
Creio que, por mais que se esteja cometendo uma injustiça com esse senhor, já que, no final, ele pode ser considerado inocente, há uma forte razão para impedi-lo de exercer aquela profissão, pelo menos enquanto não for esclarecida a questão. E esse esclarecimento não precisa aguardar o trânsito em julgado do processo penal. Pode ocorrer até mesmo em um processo administrativo, em que o suposto pedófilo irá apresentar sua defesa, contando sua versão para os fatos, dentro do devido processo. Se a autoridade administrativa se convencer dos seus argumentos, pode contratá-lo mesmo sem uma resposta da Justiça Penal. Nesse caso, diante da ausência de condenação ou de absolvição, a responsabilidade criminal não interfere na responsabilidade administrativa.
E para não parecer que o exemplo é meramente retórico, por envolver um crime que abomina a sociedade, pode-se dizer que o mesmo raciocínio se aplica a um caso, por exemplo, de um candidato a um cargo público de motorista que esteja respondendo a vários processos criminais por crimes de trânsito ainda que nenhum deles tenha transitado em julgado. A Administração Pública, certamente, poderá verificar as circunstâncias em que os crimes foram cometidos, as alegações de defesa sustentadas pelo candidato e, num juízo prévio, verificar se há plausibilidade dos argumentos apresentados. Diante disso, pode formular seu próprio juízo - logicamente não vinculante para a instância criminal - e concluir se o candidato preenche os requisitos para o cargo.
Diante disso, não se pode concordar totalmente com a tese de que nenhuma restrição a direito pode ocorrer enquanto o processo penal não chegar ao fim com uma sentença judicial condenatória definitiva.
Um servidor público pode sofrer sanções administrativas e até mesmo perder o cargo, antes de qualquer condenação criminal, bastando que a Administração obedeça ao devido processo administrativo disciplinar. Um estrangeiro pode ser expulso ou deportado do país, independentemente da apuração da conduta na esfera criminal, caso pratique um ato que autorize essas medidas. Uma empresa acusada de praticar crimes ambientais poderá ter a suas atividades embargadas, na via administrativa, embora não exista qualquer processo criminal concluído e os exemplos se seguem.
Essas situações ocorrem com extrema freqüência e não representam qualquer violação ao princípio da presunção de inocência. Há uma razão bastante simples para isso: há duas instâncias diferentes que, em regra, não se comunicam. Ou seja, a instância administrativa e a instância penal correm “em paralelo”, podendo até mesmo gerar resultados diferentes, já que a configuração da responsabilidade penal exige uma comprovação mais intensa da autoria e da materialidade do delito.
Se ninguém pudesse sofrer qualquer sanção administrativa disciplinar enquanto o processo criminal não fosse concluído para apurar os mesmo fatos, então responder a um processo penal seria algo vantajoso, já que imunizaria a pessoa contra qualquer interferência administrativa até o demorado trânsito em julgado.
No fundo, o princípio da presunção da inocência não tem muito a ver com a questão ora debatida. Ninguém está dizendo que um determinado candidato é culpado por responder a inquéritos policiais ou a processos penais. Trata-se tão somente de se exigir um requisito mínimo de idoneidade moral “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato”, conforme prevê a própria Constituição (art. 14, §9º da CF/88).
Vários cargos públicos exigem requisitos semelhantes para investidura, como a própria magistratura. Pode ter certeza de que um advogado que tenha sido expulso da OAB pela prática de inúmeras infrações éticas dificilmente será aceito em um concurso para a magistratura, mesmo que não existam processos criminais contra ele. Vida pregressa não se confunde com condenação criminal. Aliás, o ministro Marco Aurélio, que é um dos mais ardorosos defensores da tese de que qualquer pessoa pode se candidatar a cargos políticos enquanto não houver trânsito em julgado da sentença penal condenatória, já aceitou que o levantamento da vida pregressa de candidato para o cargo de investigador de polícia levasse em conta fatores meramente indiciários, como o testemunho de dois outros policiais e um inquérito por posse de droga arquivado por falta de provas (STF, RE 15640/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 5/9/1995).
A Justiça Eleitoral, quando aprecia pedidos de registro de candidaturas, está exercendo uma atividade semelhante à de uma comissão de concurso ao analisar a vida pregressa dos candidatos a cargos públicos, com a diferença que os atos são praticados por membros do Judiciário, com muito mais garantias, mais transparência, mais debates, mais aprofundamento quanto à verdade dos fatos, já que a profissão do juiz o habilita a se aproximar da verdade real com muito mais técnica.
Portanto, há duas instâncias completamente diferentes: a instância criminal e a instância eleitoral. No caso, enquanto não houver qualquer condenação ou absolvição na esfera penal, não há comunicação de instância, ou seja, a responsabilidade penal não interfere na responsabilidade eleitoral.
Por isso, o que está havendo nessa discussão é um "jogo de palavras", onde o princípio da presunção de inocência está sendo manipulado para “blindar” os candidatos a cargos políticos.
Se for perguntado “é justo que uma pessoa sobre a qual pairam meras suspeitas de que praticou ilícitos seja impedida de se candidatar a um cargo político, sabendo que um dos pilares do Estado de Direito é o princípio da presunção de inocência?”, certamente a resposta será negativa.
Por outro lado, se for perguntado “é justo que uma pessoa nitidamente criminosa/corrupta/bandida/desonesta, com fortes indícios de que cometeu crimes graves, possa se candidatar a um cargo político, usando inclusive as verbas obtidas ilicitamente para financiar a sua campanha?”, certamente também a resposta será negativa!
Por isso, a pergunta correta, para que não haja um direcionamento na resposta, é a seguinte: a Justiça Eleitoral pode julgar se um pré-candidato tem as qualificações éticas mínimas necessárias para ocupar um cargo político?
E com isso, a questão da presunção de inocência deixa de ser o foco principal da controvérsia, pois ninguém discute que é um absurdo que uma pessoa seja considerada culpada sem uma condenação definitiva. Mais uma vez, deve ser enfatizado: o requisito de “idoneidade moral” não significa uma “ficha criminal limpa” e sim a ausência de indícios objetivos capazes de justificar o indeferimento da candidatura. São instâncias independentes. Logo, nada impede que, respeitado o devido processo, a Justiça Eleitoral verifique se há base fática suficiente para indeferir o pedido da candidatura, ainda que não exista qualquer sentença condenatória definitiva.
Essa independência de instâncias — criminal e eleitoral — pode ser ilustrada citando o caso do ex-presidente da República Fernando Collor.
Collor, pelos mesmos fatos, respondeu a um processo político-criminal perante o Congresso Nacional e um processo exclusivamente criminal perante o Supremo Tribunal Federal. Collor foi punido pelo Senado Federal e perdeu seus direitos políticos antes de o processo criminal ter sido concluído. E o mais interessante, é que, no STF, o ex-presidente foi absolvido por falta de provas, demonstrando, inclusive, que os critérios de formação da convicção para o julgamento são diferentes, exigindo-se um grau de certeza bem mais elevado para justificar uma condenação criminal.
Se o princípio da presunção de inocência fosse interpretado de modo a impedir qualquer restrição de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o Senado Federal teria que aguardar o julgamento criminal para poder punir o ex-presidente, o que seria um flagrante absurdo, ante a independência entre as instâncias em questão.
Uma conclusão diferente transformaria o princípio da presunção de não-culpabilidade em um escudo ou uma blindagem instransponível para a imunidade na esfera não-criminal, já que, geralmente, o processo penal é mais demorado, até para que se atinja um grau maior de certeza da culpa. Certamente, não foi intenção do constituinte, ao positivar o princípio da presunção de inocência, permitir que pessoais sem escrúpulos se candidatem a cargos políticos visando precisamente se beneficiar das "imunidades" e do "poder de influência" que o cargo proporciona para satisfazer a interesses pessoais.
Outro ponto importante que será explicado com mais profundidade ao longo deste estudo é o seguinte: a existência de processos ou inquéritos criminais — ou mesmo ações de improbidade administrativa! — não obriga que a Justiça Eleitoral indefira o registro de candidaturas. Apenas autoriza, melhor dizendo, serve como base para que esse registro não seja deferido, diante de indícios razoáveis de falta de idoneidade moral. Dito de outro modo: não é a mera existência de inquéritos ou processos que deve ser o fator preponderante para o indeferimento do registro, mas a demonstração objetiva de que falta ao candidato uma postura ética compatível com a atividade parlamentar. Esse é ponto-chave de todo o raciocínio que será desenvolvido. Antes, porém, vale analisar o fundamento normativo que justifica a tese ora defendida.
Ausência de Previsão Legal ou Constitucional
Outro argumento bastante convincente é a alegação de que não há qualquer previsão legal ou constitucional dando à Justiça Eleitoral o poder para indeferir candidaturas com base em processos ou inquéritos criminais sem o trânsito em julgado. Sustenta-se que a Lei Complementar 64/90 é bastante enfática ao dizer que são inelegíveis os “os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena” (art. 1º, inc. I, “e”).
Logo, de acordo com essa lógica, somente poderiam ser considerados como inelegíveis os candidatos que estivessem enquadrados exatamente nessa situação, o que não é o caso daqueles que ainda não foram condenados na esfera criminal.
Aliás, esse foi o argumento principal acolhido, pelo Tribunal Superior Eleitoral, por uma apertada maioria de 4 contra 3, para autorizar o pedido de candidatura do Presidente do Vasco da Gama, Eurico Miranda, que respondia a inúmeros processos criminais, inclusive com algumas condenações em primeira instância, embora nenhuma sentença transitada em julgado.
Na ementa do acórdão, ficou registrado que “na ausência de lei complementar estabelecendo os casos em que a vida pregressa do candidato implicará inelegibilidade, não poderá o julgador, sem se substituir ao legislador, defini-los” (TSE, RO 1.069/RJ, rel. Min. Marcelo Ribeiro, j. 20/9/2006).
Esse argumento tem dois “furos”.
O primeiro é mais “polêmico”, pelo menos para uma visão tradicionalista do direito: por mais que não exista autorização legal, a Constituição Federal é norma jurídica, de modo que o julgador pode decidir com base unicamente no texto constitucional. Logo adiante, esse ponto será explicado com detalhes.
O segundo é mais convincente para os tradicionalistas: mesmo que a norma constitucional fosse meramente “programática”, não “auto-aplicável”, conforme prevê a súmula 13 do TSE (“não é auto-aplicável o § 9º, Art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4-94”), há uma autorização legal contida no artigo 23 da Lei Complementar 64/90, que daria suporte à tese de que a Justiça Eleitoral pode indeferir o registro de candidatura “pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.
Vamos ao primeiro ponto.
Hoje, é pacífico o entendimento de que a Constituição Federal é norma jurídica e, como tal, tem a força de estabelecer comandos obrigatórios para os diversos órgãos do poder público mesmo na ausência de leis. Esse entendimento ficou bastante nítido quando o Supremo Tribunal Federal, na ADC 12/2005, considerou como constitucional a resolução contra o nepotismo no Judiciário, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No referido julgamento, ficou claro que não apenas a lei em sentido formal, mas também a Constituição pode emitir ordens normativas direcionadas à atividade pública, de modo que o CNJ, com base unicamente nos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, previstos no artigo 37 da CF/88, poderia editar ato normativo secundário (resolução) proibindo a contratação de parentes de magistrados para cargos no Poder Judiciário.
O mesmo raciocínio se aplica igualmente, e com muito mais razão, à Justiça Eleitoral, que também pode extrair diretamente da Constituição obrigações a serem observadas, de forma vinculante, pelos participantes do processo eleitoral. Isso ocorreu de modo particularmente visível quando o Tribunal Superior Eleitoral editou resolução obrigando a “verticalização partidária”, bem como, no ano passado, regulamentou, por resolução, a chamada “fidelidade partidária”, prevendo, inclusive, hipóteses de perda do mandato parlamentar. Em ambos os casos, a fonte normativa que embasou a edição das resoluções foi, sobretudo, a Constituição Federal, inclusive a abstrata cláusula constitucional do “Estado Democrático de Direito”. E, em ambos os casos, o Supremo Tribunal Federal validou o entendimento adotado pelo TSE (no caso da verticalização: STF, ADI 2.626-DF e ADI 2.628-DF, rel. orig. Min. Sydney Sanches, red. para o acórdão Ministra Ellen Gracie, 18.4.2002; no caso da fidelidade partidária: STF, MS 26603/DF, rel. Min. Celso de Mello, 3 e 4.10.2007).
Dito isso, já se pode concluir que a Justiça Eleitoral poderia, em tese, retirar diretamente da Constituição uma autorização para indeferir o registro de candidaturas, desde que existisse um comando normativo nessa direção. E há efetivamente. Aliás, o comando normativo é muito mais detalhado do que o genérico princípio da moralidade e da impessoalidade, invocado no caso do nepotismo, e do Estado Democrático de Direito, invocado no caso da fidelidade partidária.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, com bastante nitidez, que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (art. 14, §9º).
Para justificar a imediata aplicação dos princípios estabelecidos na referida norma constitucional, é preciso se alongar um pouco, até para tentar afastar a teoria da aplicabilidade das normas jurídicas elaborada por José Afonso da Silva.
De início, é preciso que se diga que a referida norma encontra-se no Título II da Constituição, que é intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Trata-se, portanto, de uma norma ligada aos direitos fundamentais, especialmente aos direitos políticos.
Todos os direitos fundamentais, por força do artigo 5º, §1º, da CF/88, possuem aplicação imediata. Logo, em hipótese alguma, uma norma definidora de direito fundamental pode deixar de ser concretizada pela ausência de lei, cabendo ao Judiciário tomar as medidas necessárias para que o direito não fique sem efetividade.
Dentro dessa idéia, adotando a conhecida classificação da aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva, os direitos fundamentais ou seriam normas constitucionais de eficácia plena e, portanto, capazes de produzir todos os efeitos essenciais nela previstos desde a sua entrada em vigor, ou seriam normas constitucionais de eficácia contida, isto é, estariam suficientemente regulamentadas pelo constituinte, mas seriam passíveis de restrições pelo parlamento. Em hipótese alguma, um direito fundamental poderia ser enquadrado como norma de eficácia limitada, já que essa espécie é justamente o oposto da idéia de aplicação imediata. Aliás, essa idéia foi defendida pelo próprio José Afonso da Silva, nas edições mais recentes do seu Curso de Direito Constitucional Positivo.
Não é minha pretensão construir uma nova teoria em torno da aplicabilidade das normas constitucionais, entre tantas outras existentes. Aqui, basta perceber que, atualmente, se reconhece que o Estado tem, em relação aos direitos fundamentais, o dever de respeitá-los (não violar o direito), protegê-los (não deixar que o direito seja violado) e promovê-los (possibilitar que todos usufruam o direito), independentemente de qualquer regulamentação infraconstitucional.
O dever de respeito, proteção e promoção, que é inerente a qualquer direito fundamental, impõe uma multiplicidade de tarefas ao poder público, de modo que a concretização plena dessas normas não se esgota em um mero agir ou não-agir do Estado. Logo, é possível que uma única norma seja, com relação a algum desses comandos, de eficácia plena, mas, em outros, seja de eficácia contida ou até mesmo limitada.
O artigo 14, §9, da CF/88, estabelece que “lei complementar estabelecerá outros casos”. Seguindo a classificação tradicional de José Afonso da Silva, essa norma segue a mesma estrutura das normas de eficácia limitada, pois depende de uma regulamentação para adquirir plena efetividade. No entanto, essa conclusão se choca com o artigo 5º, §1º, da CF/88, que prevê a cláusula de aplicação imediata. Como então resolver esse conflito?
Alguns constitucionalistas sugerem, como forma de superar essa controvérsia, uma mitigação do sentido da cláusula de aplicação imediata. Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho chega ao ponto de afirmar que o art. 5º, §1º, da CF/88, seria destituído de qualquer significado prático, pois apenas poderiam ter aplicação imediata “as normas completas, suficientemente precisas na sua hipótese e no seu dispositivo, para que possam ter a plenitude da eficácia” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 296).
Essa solução, contudo, viola um princípio básico da hermenêutica segundo o qual não há palavras inúteis na Constituição. A cláusula da aplicação imediata tem sim uma importância prática extraordinária. Ela é a consagração expressa do princípio da máxima efetividade, que é inerente a todas as normas constitucionais, especialmente as definidoras de direitos. Ela é o reconhecimento formal por parte do constituinte de que os direitos fundamentais têm uma força jurídica especial e potencializada.
Portanto, quando se analisa uma norma como a contida no artigo 14, §9º, da CF/88, deve-se partir do princípio de que ela tem aplicação imediata, ainda que seu efeito principal dependa da atuação do legislador. Explicando melhor: a referida norma enuncia não um simples comando dirigido ao legislador, mas inúmeras ações e diretrizes a serem seguidas pelo Estado como um todo. Trata-se, em última análise, de uma cláusula geral de proteção da legitimidade ética das eleições. Essa cláusula terá aplicação imediata na medida em que impõe, desde logo, o dever de respeito, proteção e promoção da moralidade eleitoral, a ser observado por todos os agentes públicos, independentemente de qualquer regulamentação. O juiz eleitoral deve pautar suas decisões sempre com uma preocupação na moralidade. Esse dever não precisa, em regra, aguardar o legislador para gerar efeitos imediatos, ainda que o legislador tenha a obrigação de densificar, ou seja, regulamentar os pressupostos de validade da norma, para que ela alcance um grau máximo de efetividade. Enquanto o legislador não fizer isso, cabe ao Judiciário se pautar por essa diretriz imposta pela Constituição, agindo sempre pensando em dar a máxima efetividade à norma.
Com base nisso, pode-se dizer que a Justiça Eleitoral poderia perfeitamente invocar o artigo 14, §9º, da CF/88, para indeferir registro de candidaturas “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
E mesmo que se ache essa interpretação é “invencionice”, já que confere um poder muito grande para os juízes eleitorais sem o necessário suporte legislativo/democrático, pode-se lembrar que a Lei Complementar 64/1990, que regulamenta os casos de inelegibilidade, já prevê uma autorização semelhante. Trata-se, no caso, da autorização do artigo 23 redigida nos seguintes termos: “Art. 23. O Tribunal formará sua convicção [a respeito da inelegibilidade] pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.
Com base nisso, pode-se dizer que há duas situações completamente distintas de inelegibilidade previstas na LC 64/90: (a) a do artigo 1º, inc. I, “e”, que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e (b) a do artigo 23, que não prevê um juízo criminal definitivo.
A primeira é vinculante e pode ser reconhecida por qualquer membro da Justiça Eleitoral, independentemente de requerimento. Já a segunda tem uma margem maior de discricionariedade, mas dependerá de requerimento para ser apreciada pela Justiça Eleitoral e será precedida de um processo mais longo, onde o contraditório e a ampla defesa ganharão uma dimensão bem mais abrangente do que na primeira situação.
No processo de impugnação de registro de candidatura, todos os documentos contidos nos inquéritos e processos criminais, ou mesmo nas ações de improbidade administrativa, até aqueles ainda não concluídos em definitivo, poderão ser “emprestados” para embasar a decisão da Justiça Eleitoral. A mera existência de processos e de inquéritos em andamento não justifica o indeferimento do registro. Será o conteúdo das provas e indícios apresentados nesses procedimentos criminais que justificará um eventual indeferimento da candidatura, cabendo à Justiça Eleitoral realizar a “livre apreciação” desse material, conforme determina o artigo 23 da LC 64/90. A decisão deverá ser consistente e bem fundamentada, devendo se pautar em dados objetivos que justifiquem o indeferimento do registro da candidatura.
Revista Consultor Jurídico,