Para o presidente do PPS, os progressistas têm que apresentar um contraponto à "revolução da informática"
Por RUDOLFO LAGO
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O PPS (Partido Popular Socialista), legenda que Roberto Freire preside, é o que restou do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB). A atual sede do PPS fica numa sala de um shopping center em Brasília, templo do consumo capitalista. É um sinal de que o capital triunfou de forma inexorável e que, 90 anos depois da Revolução Bolchevique na União Soviética, o discurso socialista virou mera quinquilharia exótica? Freire jura que não. Na sua opinião, o próprio capitalismo hoje existente é herdeiro da experiência socialista na União Soviética. Ele admite que o capitalismo venceu com a queda do Muro de Berlim em 1989. Mas é também um modelo desgastado, em via de renovação, com a era da informática. Para Freire, os partidos de esquerda contemporâneos deveriam formular um contraponto a esse novo modelo de capitalismo que surge com a revolução digital. Um caminho que, na opinião do presidente do PPS, deveria se dar pela defesa inquestionável da democracia. E é esse o ponto que faz com que o PPS, sob a sua presidência, se oponha ao governo de Por RUDOLFO LAGO Luiz Inácio Lula da Silva. Para ele, o PT não discute essa nova realidade, e nem o partido nem o governo têm reais compromissos com a democracia. Na entrevista a seguir, Freire faz um balanço de como os 90 anos do socialismo se refletiram no Brasil e o que eles significam para a política brasileira de hoje.
ISTOÉ – Que herança a Revolução Bolchevique, que completou 90 anos em novembro, deixou para o mundo de hoje?
Roberto Freire – A verdade é que o próprio capitalismo, como existe hoje, tornou-se herdeiro do socialismo. O socialismo mudou o capitalismo. A Revolução Comunista está inserida em muito do que se produziu no mundo no século XX em todas as áreas: o modernismo, a arte contemporânea, escolas artísticas como o dadaísmo e o surrealismo. Além disso, se não fosse a pressão do bloco socialista, hoje não se falaria em sindicatos organizados, direitos trabalhistas, programas de renda mínima, etc. Não teria havido a descolonização do continente africano.
ISTOÉ – A História acabou depois da extinção da União Soviética?
Freire – Essa idéia do fim da História surgiu logo depois do fim da experiência do socialismo real. É claro que, naquele momento, houve uma vitória incontestável do modelo capitalista. Mas dizer, como se disse, que ali triunfou para sempre esse modelo, decretando-se o fim da História, é uma tese hoje revista até mesmo por aqueles que a formularam. No primeiro momento, houve a radicalização do liberalismo, mas depois essa idéia se desgastou inteiramente. Hoje, o capitalismo, no molde que o conhecemos, é também um modelo decadente. Aqui, na América Latina, nós assistimos a esse fracasso de forma mais dramática na crise da Argentina. E a maior demonstração de que a História prossegue é que estamos no início de uma nova revolução.
ISTOÉ – Que revolução?
Freire – Na verdade, o fim da experiência do socialismo real representou o fim de uma era, não apenas para os socialistas, mas eu creio que também para os capitalistas. O século XX propriamente dito começa com a Revolução Socialista de 1917 e termina com a queda do Muro de Berlim em 1989. É o século da divisão do mundo entre os dois modelos econômicos. Esse esgotamento histórico levou ao início de um novo momento, que é a revolução da informática. Na verdade, estamos vivendo novos formatos de relação de trabalho que não cabem nem na antiga formulação capitalista e muito menos no velho modelo socialista. São pessoas se associando para um projeto pela rede de computadores sem nunca terem se visto. Pessoas tendo idéias que as deixam milionárias de uma hora para outra. Novos países despontando como possíveis protagonistas de um futuro próximo no cenário internacional. Já vivemos um novo momento que ainda não sabemos exatamente como será.
"O autoritarismo não foi uma característica apenas de Stálin. O socialismo foi o ovo da serpente que se desenvolveu com Stálin"
ISTOÉ – E como a esquerda vai se inserir nesse novo mundo?
Freire – Essa é a situação que me irrita um pouco hoje. O comunismo surgiu como uma resposta, como contraponto aos excessos do modelo capitalista da Revolução Industrial. É preciso que um novo contraponto se formule a partir da nova realidade que está surgindo. Que nova forma de socialismo vai surgir como contraponto a essa nova forma de capitalismo? O problema hoje é que pouquíssimas pessoas estão discutindo isso. Essa é uma discussão que não passa pelos partidos de esquerda. O dramático é que boa parte da esquerda continua se comportando hoje como se nada houvesse mudado. Na verdade, a esquerda se tornou conservadora, porque sai em defesa de antigos interesses que a nova realidade a cada dia torna mais sem sentido. Em vez de discutir o mundo diante de uma nova realidade que é inexorável, segura- se na defesa de um mundo antigo que, na verdade, é o único que parece ter lógica para eles, porque é aquele que às vezes explica a sua própria existência. Partido político não é religião para ser uma coisa imutável.
ISTOÉ – Essa é uma discussão que ocorre no PPS?
Freire – O PPS é fruto de toda uma série de revisões que começaram na década de 50. E que foram forjando a idéia de uma defesa inquestionável da democracia. Eu creio que essa defesa é que terá de ser o cerne do discurso de esquerda desse futuro que já vivemos. A democracia pode ser o novo nome do socialismo. O caminho pelo qual se possam aprofundar as liberdades a partir do respeito às minorias. A nossa articulação para o novo mundo que vai surgindo é no sentido de criar uma nova esquerda democrática, capaz de compreender essa nova realidade que surge
''A esquerda é conservadora''
Para o presidente do PPS, os progressistas têm que apresentar um contraponto à "revolução da informática"
Por RUDOLFO LAGO
ISTOÉ – Mas a democracia nunca foi um valor defendido pelos comunistas, pelo menos depois da ascensão de Josef Stálin na URSS.
Freire – Mas essa é a revisão que só nós fizemos, a partir das denúncias feitas por Nikita Kruchóv dos desmandos do período stalinista. Hoje, porém, eu avalio que o autoritarismo não foi uma característica apenas do período de Stálin. Eu tenho dito que o socialismo, na verdade, foi o ovo da serpente. Nasceu com Stálin algo que já estava instalado desde o começo. Era um modelo de lógica militarista, difícil de conviver com a democracia. Eu não creio que se (León) Trotsky tivesse triunfado sobre Stálin a coisa viesse a ser muito diferente no que diz respeito a liberdades democráticas.
ISTOÉ – O sr. diz que apenas o PCB fez uma revisão do autoritarismo. Como isso se reflete na esquerda brasileira?
Freire – A esquerda brasileira não é democrática na sua origem. Isso não justifica o golpe de 1964, mas não deixa de ter razão quem afirma que o projeto da esquerda brasileira antes daquele ano também não era democrático.
ISTOÉ – O que era, então?
Freire – O que houve ali foi uma disputa entre dois blocos que pensavam em regimes autoritários para ver quem dava o golpe primeiro. Triunfou o bloco da direita. Depois, entre aqueles que pregaram a luta armada, desejava-se a derrota da ditadura militar para a instalação de um regime socialista também não-democrático. A verdade é que os partidos de esquerda que formaram o PT não fizeram nem a primeira das revisões, que foi a denúncia de Kruchóv dos desmandos cometidos por Stálin no XX Congresso do Partido Comunista da URSS em 1956. Ali, um monte de convicções foi jogado fora. Começa a se esboçar ali a idéia de luta dentro do campo político institucional, da chamada via pacífica, da possibilidade de tomada do poder não pela via da força. Em 1962, parte dos comunistas discorda dessas revisões e se fundou aqui no Brasil o PCdoB. No PCB, isso se consubstancia posteriormente na decisão de não apoiar a luta armada e de se engajar no MDB no combate à ditadura. Em certa medida, nós fomos os grandes responsáveis por fazer com que o MDB deixasse de ser o “partido do sim”, como a ditadura o chamava, para se tornar de fato o “partido do não”. Em 1974, quando o MDB deu o primeiro grande susto na ditadura, elegendo 16 senadores, outros partidos de esquerda pregavam o voto nulo.
ISTOÉ – E o que isso tem a ver com o que representa atualmente o PT?
Freire – O PT surge de blocos de esquerda que não estavam no PCB. E só o PCB estava na luta democrática durante a ditadura. Esses demais partidos só vão ingressar no MDB depois do fracasso total da luta armada. E vão internamente disputar espaço conosco. Foram, por exemplo, contra a entrada de Teotônio Vilela no partido porque ele havia apoiado o golpe em 1964. Ora, se mudou de idéia depois, teria que ser bemvindo, porque a sua chegada enfraquecia o regime que nós combatíamos. Depois da redemocratização, foram buscar a hegemonia das esquerdas contra nós no voto. Então, a relação entre o PCB e o PT sempre foi conflitante.
ISTOÉ – Adversários de origem...
Freire – No sindicalismo, éramos adversários. Na política, nos colocamos várias vezes em posições antagônicas. Depois da luta pelas eleições diretas, o PT ficou contra a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Unimo-nos para o impeachment de Fernando Collor, mas outra vez o PT não aceitou participar do governo Itamar Franco. E, assim, o PT foi crescendo, beneficiando-se desses momentos, mas evitando participar das alianças para governar o País que poderiam descaracterizá-lo perante os olhos do eleitorado. E foi ganhando também em cima das nossas fraquezas.
ISTOÉ – Que fraquezas?
Freire – A verdade é que o PCB viveu um calvário depois da anistia. O exílio é um processo que rompe a trajetória política das pessoas. Mas a vida não pára. Os exilados, depois, querem retomar as coisas a partir do ponto em que as deixaram, ignorando essa evolução. Acho que foi um pouco o que aconteceu com Luís Carlos Prestes. Ele voltou com a anistia e iniciou um processo de luta interna que dificultou a possibilidade de crescermos naquele momento da retomada da democracia. Aí, essa luta interna se somou à realidade mundial, com o fim da experiência do socialismo real na União Soviética, que nos obrigou a repensar tudo.
"Se Chávez tivesse ganho o plebiscito, ele instalaria uma ditadura. E o apoio da esquerda a ele pode incentivar uma direita não-democrática"
ISTOÉ – E o que virou o PCB depois que passou a se chamar PPS?
Freire – O cerne de tudo passou a ser para nós a defesa da democracia. O PPS é resultado da crise do socialismo. Mas é também o resultado de toda essa experiência de revisão em torno da questão democrática. Eu ainda sou marxista, mas não sou mais comunista, porque o comunismo acabou.
ISTOÉ – Mesmo adversário, o PT é um partido de esquerda no poder. Não é incoerente que os ex-comunistas estejam com conservadores históricos como o DEM?
Freire – Nós não temos um governo de esquerda. O PT no governo caiu para o cinismo. Quando foi para o governo, abriuse para alianças no campo conservador numa ótica simplesmente eleitoreira. Nós chegamos a apoiar e participar inicialmente do governo, mas nos afastamos na medida em que nada do que propúnhamos era sequer levado em consideração. Nós temos hoje um governo que herdou o que havia de pior na prática dos partidos conservadores tradicionais. Que não formula nada. Que não reflete nada. Que não pensa nada. Que apenas se aproveita de um bom momento internacional e da sua política de marketing para vender o que não existe.
ISTOÉ – Mas a situação econômica não melhorou?
Freire – Não podemos ficar nessa de nos compararmos apenas a nós mesmos. O discurso do governo baseia-se em comparar o agora com uma fase anterior do Brasil, ignorando que o mundo inteiro vive hoje um bom momento. Como é que nós estamos em comparação com a China, ou com a Índia? Ou mesmo em comparação com alguns dos nossos vizinhos? Essa é a comparação que se tem de fazer. Além disso, o que hoje me preocupa é como essa falta de compromisso com a democracia se revela no poder.
ISTOÉ – Falta de compromisso com a democracia?
Freire – Se Hugo Chávez tivesse ganho o plebiscito na Venezuela, ele instalaria ali uma ditadura. E como a esquerda brasileira da qual o PT faz parte se posicionaria diante disso? Como se posicionaria Lula, que chegou a elogiá-lo publicamente? Em que medida isso não tem relação com esse discurso de terceiro mandato? O risco disso é que tal postura pode incentivar também uma direita igualmente não-democrática. E aí? Vamos voltar ao velho cenário anterior a 1964? Não podemos aceitar isso. É o oposto do caminho que pregamos.
Fonte: ISTOÉ Online