Ana Maria Tahan
A Constituição de 1988 enterrou os decretos-leis a que recorriam os governos militares desde que o inventaram, em 1969. Trocou-os pelas medidas provisórias. Tanto um quanto outro deveriam tratar de matérias de urgência e relevância, teriam caráter transitório porque, depois de determinado tempo, deveriam virar lei. Passam a vigorar tão logo editados pelo Planalto. Os decretos não podiam ser modificados. As MPs, sim. Há outras diferenças entre um e outro, mas se igualam tanto no uso excessivo dos instrumentos pelo Executivo quanto no fato de tratarem de tudo, incluindo temas sem urgência ou relevância.
O domínio das MPs sobre as pautas da Câmara e do Senado só fizeram crescer desde a promulgação da Lei Maior, batizada como cidadã pelo então presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães. Têm tanta força que trancam a pauta do Congresso, impedindo a análise de qualquer outro projeto. A submissão parlamentar à agenda de interesses do governo de plantão no momento mandou para as calendas mais de mil propostas. Acumulam poeira nas gavetas de comissões do Legislativo há quase duas décadas, como atestou reportagem do jornal Folha de S. Paulo, publicada no domingo.
Estão por lá, esquecidos, os projetos de legalização do jogo do bicho, do fim do voto obrigatório, a regulamentação do uso científico de animais para pesquisa, a reposição florestal. Quando senador, Fernando Henrique Cardoso encaminhou proposta para taxar as grandes fortunas. Isso foi há 18 anos. Durante três anos, o texto passeou por comissões e está na fila de votação do plenário desde 2000.
Tão logo assumiu o mandato, 13 anos atrás, Marta Suplicy entrou a campo e desafiou convenções, protagonizou batalhas com a bancada evangélica, atraiu parceiros para transformar em lei a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Erroneamente batizado de casamento gay pelos adversários, o projeto foi colocado na agenda de votação em 2001. Foi retirado por falta de acordo dos líderes partidários.
A mesma sina persegue temas como o fim do nepotismo nos três poderes, que entrou em pauta mais de 10 vezes este ano e jamais foi analisado. Em quase duas décadas, os deputados propuseram 2.110 emendas constitucionais. Apenas 19 se tornaram leis. Entraram com 30.297 projetos, 458 se transformaram em normas jurídicas. A maioria se refere à criação de datas.
Assuntos polêmicos ficam a cargo do Executivo. Com a medida provisória para alegar urgência, o governo abusa do mecanismo para travar iniciativas do Legislativo que não o interessem ou interfiram em seus planos. Os fatos confirmam a premência de se repensar o uso das MPs. Impor limites aos excessos, mudar a lei para tornar a lei melhor.
Fonte: JB Online