Brasil bate recorde mundial em ações contra jornalistas
por Lilian Matsuura
A liberdade de expressão parece não estar entre os pontos fortes da democracia brasileira. Existe uma ação de indenização por danos morais para cada jornalista que trabalha nos cinco principais grupos de comunicação do país (Folha, Globo, Estado de São Paulo, Editora Três e Abril). “Esse é um recorde mundial”, segundo a ONG Article 19, organização de defesa da liberdade de expressão fundada na Inglaterra e com escritório no Brasil desde o ano passado.
O levantamento feito pela revista Consultor Jurídico, e que embasou parte do diagnóstico elaborado pela ONG sobre a liberdade de expressão e informação no Brasil, constatou também que o valor médio das indenizações gira em torno de R$ 80 mil, 25% maior que em 2003. O salário médio de um jornalista brasileiro gira em torno de R$ 1,5 mil. “Enquanto grandes veículos são capazes de se proteger contra tais ações, a situação torna-se mais complicada em relação a veículos menores e jornalistas individuais”, alerta o relatório divulgado pela Article 19.
Muitos desses processos tratam de investigações sobre corrupção, envolvendo políticos e membros do Judiciário, “exatamente as pessoas que deveriam demonstrar maior tolerância ao escrutínio da mídia em razão da função que exercem”, analisa a ONG. Outra constatação trazida à tona é a de que um grande número de decisões de primeira instância tem constituído censura. Muitas liminares proíbem a publicação de informações.
Segundo o relatório, o Supremo Tribunal Federal revoga cerca de 80% das decisões julgadas procedentes. Diante desses dados, a diretoria da Article 19 concluiu que a alta porcentagem de decisões reformuladas demonstra a falta de conhecimento sobre os limites da liberdade de expressão ou revela o nível de pressão sofrida pelos juízes.
A entidade sugere programas de capacitação para juízes. As discussões devem girar em torno das indenizações por danos morais e também em uma tentativa de estabelecer algumas diretrizes sobre o valor das condenações. “Soluções não pecuniárias devem ser priorizadas. Indenizações devem ser utilizadas apenas quando outras soluções sejam insuficientes para remediar o dano causado pelas declarações difamatórias.”
Além disso, pretende encorajar a mídia desenvolver sistemas de auto-regulação, como padrões para as reportagens, ombudsman, comitê de ética.
Marco regulatório
“A legislação brasileira relativa à liberdade de expressão e informação é, na melhor das hipóteses, incompleta, na pior, seriamente problemática”, afirma a ONG.
Segundo a Article 19, o Legislativo brasileiro tem falhado em traduzir o direito à liberdade de expressão em leis que os protejam de forma efetiva. E critica que a Lei de Imprensa em vigor seja ainda aquela editada nos tempos da ditadura.
Para os especialistas consultados pela entidade, a quantidade de leis regulando o mesmo tema gera insegurança jurídica, porque dão ensejo a interpretações divergentes e “disposições duvidosas que abrem espaço para abusos contra a liberdade de expressão”.
A ONG internacional clama às autoridades brasileiras que preencham o que entendem como vácuo legislativo existente e que priorizem a adoção de um marco regulatório para a liberdade de expressão no Brasil.
“Toda e qualquer legislação adotada na área deve obedecer a padrões internacionais, ou seja, deve aplicar apenas restrições legítimas à liberdade de expressão e tais restrições devem ser adotadas a partir da observação e respeito aos direitos humanos, especialmente aqueles relativos à pluralidade, diversidade, acesso à informação, participação pública e controle social”, conclui.
Leia o relatório
DECLARAÇÃO FINAL DA MISSÃO AO BRASIL
sobre
a situação da liberdade de expressão
pela
ARTICLE 19
Campanha Global pela Liberdade de Expressão
São Paulo / Londres
Agosto de 2007
Introdução
De 07 a 14 de agosto de 2007 a Diretora Executiva da ARTICLE 19 e a Coordenadora do escritório da ARTICLE 19 no Brasil realizaram uma missão de pesquisa e advocacia, cujo objetivo foi analisar o atual estado da liberdade de expressão, inclusive da liberdade de informação, no Brasil. No decorrer da missão foram realizados encontros com vários representantes da sociedade civil, dos veículos de comunicação social, jornalistas e agentes e funcionários públicos, inclusive membros do Congresso. Abaixo apresentamos um sumário das conclusões desta missão.
ARTICLE 19 encontrou uma sociedade civil impressionante e inspiradora, com um grande número de organizações nacionais e jornalistas trabalhando pelos direitos da comunicação e temas relacionadas à mídia. O vibrante ambiente gerado ao redor de seu trabalho certamente dará lugar a propostas criativas e duradouras para a promoção e defesa da liberdade de expressão e informação no Brasil.
A ARTICLE 19 entende importante e oportuno o compromisso do governo federal de lançar uma TV pública em dezembro de 2007 e espera que tal comprometimento com o serviço público seja refletido no ato final constitutivo da referida emissora. Congratulamos também a abertura demonstrada pelo governo para discutir a organização de uma Conferência Nacional de Comunicação através de consultas e com a participação de grupos da sociedade civil e da mídia, e pedimos ao governo que transforme essa oportunidade em real instrumento de proteção da liberdade de expressão, inclusive através do apoio materializado em ato do poder executivo e disponibilização de fundos que garantam bases sólidas para a realização de tão importante evento.
ARTICLE 19 também tomou conhecimento com satisfação das medidas adotadas pelo governo brasileiro para fortalecer a transparência entre os ministérios e demais órgãos da administração pública federal, inclusive pela criação do Sistema Integrado de Administração Financeira – SIAFI e dos portais da Transparência e e-Gov.
No entanto, conforme detalhado a seguir, a ARTICLE 19 também gostaria de expressar extrema preocupação em relação à situação da liberdade de expressão no Brasil; situação que julgamos séria e que pede medidas urgentes que visem a proteção e defesa deste direito.
1. Ausência de marco legal adequado
A legislação brasileira relativa à liberdade de expressão e informação é, na melhor das hipóteses, incompleta e, na pior, seriamente problemática. Enquanto o direito à liberdade de expressão e acesso à informação é protegido pelo artigo 5º da Constituição Federal, os entes legislativos brasileiros têm falhado em traduzir estes direitos em leis suficientemente fortes que os protejam de forma efetiva. As normas em vigor muitas vezes datam de décadas passadas, períodos em que regimes não-democráticos estavam no poder.
As principais leis que regem o funcionamento dos veículos de comunicação social no Brasil são a Lei de Imprensa de 1967 e o Código de Telecomunicações de 1962.
Ambas as normas foram adotadas pela ditadura militar e contêm uma série de dispositivos repressivos, típicos de regimes autoritários. Embora muitos destes dispositivos não tenham sido aplicados nos últimos anos, é inaceitável que uma democracia de 20 anos seja incapaz de revogar de forma definitiva tais normas autoritárias. Além disso, o Código de Telecomunicações encontra-se tecnologicamente ultrapassado.
As duas referidas leis foram repetidamente modificadas por um significativo número de normas posteriores, mas nunca inteiramente revogadas, embora no caso do Código de Telecomunicações cerca de 2/3 de seus artigos originais já tenham sido revogados. O grande número de leis esparsas regulando temas específicos na área tem criado uma situação de incerteza legal, na qual prevalecem interpretações divergentes e disposições duvidosas que abrem espaço para abusos contra a liberdade de expressão.
Recomendações:
Estas normas desatualizadas contrariam padrões internacionais e regionais relativos à liberdade de expressão. Existem muitos projetos de lei para revisão de tais normas, mas nenhum deles alcançou ainda progressos reais e definitivos. Assim como em muitos outros temas, o processo legislativo parece estar travado, o que prejudica grandemente a efetiva proteção da liberdade de expressão.
1. Pedimos ao governo e aos membros do congresso que tomem medidas imediatas para preencher o vácuo legal existente e priorizar a adoção de um marco regulatório para a liberdade de expressão no Brasil; um marco que esteja de acordo com a posição internacional ocupada pelo país.
2. Toda e qualquer legislação adotada na área deve obedecer a padrões internacionais, ou seja, deve aplicar apenas restrições legítimas à liberdade de expressão e tais restrições devem ser adotadas a partir da observação e respeito aos direitos humanos, especialmente aqueles relativos à pluralidade, diversidade, acesso à informação, participação pública e controle social.
2. Ameaças ao pluralismo e diversidade na mídia
Um importante padrão internacional relativo à liberdade de expressão é aquele relativo ao pluralismo e diversidade na mídia. A Corte Inter-Americana de Direitos Humanos considera que a liberdade de expressão exige que “os veículos de comunicação social estejam potencialmente abertos a todos sem discriminação ou, mais precisamente, que não existam indivíduos ou grupos que estejam excluídos do acesso a tal mídia[1]”.
Esta posição tem sido reconhecida por órgãos e cortes regionais e internacionais que têm também se manifestado sobre os vários componentes do pluralismo e da diversidade, como a existência de três sistemas de radiodifusão (público, privado e comunitário), a necessidade de pluralismo de fontes ou a existência de órgãos reguladores absolutamente independentes.
Infelizmente, a atual situação brasileira está longe de satisfazer padrões internacionais nesta área. Os veículos de comunicação social estão concentrados nas mãos de poucos, em violação ao direito da população de receber informação sobre assuntos de interesse público de uma variedade de fontes.
Esta falta de pluralismo decorre principalmente de dois fatores que moldam o contexto da mídia no Brasil:
a ausência de políticas regulatórias que apóiem o desenvolvimento de veículos independentes, em especial de veículos não-comerciais e comunitárias; e
um alto grau de concentração da propriedade dos veículos de comunicação social.
O governo federal comprometeu-se a lançar um canal de TV pública no final de 2007, sendo que até o momento inexiste um sistema público de radiodifusão no Brasil. Grupos da sociedade civil querem assegurar-se de que este canal seja o ponto de partida para a criação de um verdadeiro sistema público no país. Neste contexto, padrões internacionais sobre o tema devem ser lembrados, como: (i) a criação de estruturas apropriadas que assegurem sua independência, como Conselhos plurais e autônomos; (ii) a adoção de esquemas de financiamento que garantam o livre fluxo de informações e idéias e a promoção do interesse público; e finalmente, (iii) processos de prestação de contas que tornem os radio-difusores responsáveis perante o público, tanto em relação ao conteúdo transmitido como em relação aos recursos gastos.
A radiodifusão sonora ou de sons e imagens, de acordo com padrões internacionais, deve ser protegida contra interferências políticas ou comerciais. Independência e diversidade devem ser respeitadas. Seu conteúdo “deve servir ao interesse público e, em particular, ser equilibrado e imparcial[2]”.
Em relação à atual situação da mídia privada no Brasil, grupos da sociedade civil local encontram-se bastante preocupados com a concentração da sua propriedade, que tais grupos consideram a principal ameaça à diversidade. Seis empresas de mídia controlam o mercado de TV no Brasil, um mercado que gira mais de 3 bilhões de dólares por ano. A Rede Globo detém aproximadamente metade deste mercado, num total de 1590 bilhões de dólares. Estas seis principais empresas de mídia controlam, em conjunto com seus 138 grupos afiliados, um total de 668 veículos midiáticos (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva; a Globo, sozinha, detém 54% da audiência da TV (em um país em que 81% da população assiste à TV todos os dias, numa média de 3,5 horas por dia)[3].
A Corte Inter-Americana de Direitos Humanos reconheceu que a liberdade de expressão requer a existência de uma mídia livre e pluralista também no sistema privado de radiodifusão:
“É a mídia de massa que faz o exercício da liberdade de expressão uma realidade. Isto significa que as condições de seu uso devem estar de acordo com as exigências de tal liberdade; como conseqüência devem existir, inter alia, uma pluralidade de meios de comunicação, a proibição de monopólios em qualquer forma, e garantias para proteção da liberdade e independência dos jornalistas[4]”.
A Declaração Inter-Americana de Princípios sobre Liberdade de Expressão também exige, em seu Princípio 12, medidas que visem limitar monopólios e oligopólios:
Revista Consultor Jurídico