Por: José Eli da Veiga -
Ultimamente andam circulando duas idéias estranhas sobre o PT. Que seria "gramsciano", por exemplo. Antes fosse! A reprodução de tamanha barbaridade desrespeita o pensamento do grande intelectual marxista sardo Antonio Gramsci (1891-1937). E denota desconhecimento de suas anotações, escritas a lápis, e em linguagem cifrada, na brevíssima maturidade curtida nos cárceres fascistas de Mussolini. Antes de desaparecer, com apenas 46 anos, passou os últimos dez preenchendo 2.848 páginas em 32 grossos cadernos de capa dura.
Apenas compulsados, os rabiscos de Gramsci não deixam dúvida: se a direção do PT fosse minimamente influenciada por suas idéias, no final de 2002 ela teria feito todo o possível e imaginável para desencadear a construção de uma séria aliança de centro-esquerda. Jamais teria sequer cogitado em sair por aí comprando sórdidos apoios dessa cafajestada que se elege por legendas do político-negócio, como são PL, PTB, e PP. Não é de se estranhar, portanto, que os conhecedores e adeptos das idéias de Gramsci tenham abandonado o PT, como foi o caso do grupo carioca intelectualmente liderado pelo filósofo Carlos Nelson Coutinho.
Mas não se trata apenas de uma frontal colisão com os fatos, pois é impossível saber com um mínimo de segurança qual seria o corpo de idéias às quais deveria ser identificado o PT. A prostração diante da liderança carismática de Lula permitiu que coexistisse um colorido leque de vertentes ideológicas "radicais", em intrincado caleidoscópio de correntes e tendências. A saída analítica para interpretar tamanho imbróglio poderia ser a referência às resultantes decisões programáticas. Mas esse procedimento foi inviabilizado há mais de três anos, desde que tais orientações foram desautorizadas pela já célebre "Carta ao Povo Brasileiro".
Tão espetacular foi o salto triplo que levou o PT à presidência da República que não chegaram a se condensar as idéias e interesses nele volatilizados. Muito menos foi decantado algum ideário consistente desse condomínio de sindicalistas, clérigos, trotskistas, maoístas, castristas, guevaristas e alguns intelectuais socialistas formados antes da fornada de 1968. Não é possível, portanto, identificar aquilo que poderia ser uma suposta ideologia petista. E muito menos associá-la ao pensamento de Gramsci, o que só pode ser tomado como atroz insulto à intelectualidade italiana.
Nada impediria, contudo, que o PT se tornasse gramsciano, caso fosse realmente "refundado", como gostaria o novo presidente Tarso Genro. Dependeria, é claro, da intensidade da catarse, palavra de origem grega que significa tanto purgação quanto purificação. Para ajudar a sociedade brasileira a avançar simultaneamente na direção da igualdade e da liberdade, seria necessário que o PT se lançasse na construção de uma sólida aliança pelo aprofundamento da democracia. Exatamente o inverso dessa vã tentativa de forçar a obtenção de governabilidade pelo emprego de expedientes tão ou mais condenáveis sob o prisma ético do que os que costumam ser usados (com menos incompetência) pelas oligarquias que deveria combater.
Uma segunda sandice atribui ao DNA do petismo toda essa sujeira que está emergindo desde 14 de junho de 2005. Na versão mais refinada, a tese é que o "aparelhismo" expressa uma concepção de poder antidemocrática e anti-republicana arraigada nas organizações de esquerda em geral, e particularmente nas facções que integraram o PT. Isto porque partidos de esquerda seriam entidades incapazes de se dissociar de forma cabal e definitiva do cerne irremediavelmente autoritário da tradição bolchevique e leninista. Uma imutável informação genética que, no caso específico do PT, teria sido até piorada pela herança do corporativismo sindical varguista.
Essa tese também não resiste a um minuto de confronto com as evidências empíricas, além de ser uma espantosa aberração no plano teórico, se sustentada por cientistas sociais. Quanto mais ficam nítidos os contornos da banda podre que aliciou parlamentares mercenários (com inestimável ajuda empresarial mineira), menos dúvidas podem persistir sobre a isenção dos agrupamentos da esquerda marxista que criaram o PT, junto com redes da esquerda cristã, expoentes do "novo" sindicalismo, e um punhado de intelectuais socialistas. Mesmo que José Dirceu tenha o condutor da orquestra marrom que deu fama a delúbios, silvinhos e cuecas, isso só será a prova dos nove de que o câncer nasceu longe dos marxistas, dos cristãos e dos intelectuais socialistas. Quem pensa que Dirceu alguma vez tenha pertencido à primeira dessas três categorias deve erroneamente supor que castrismo ou guevarismo guardem alguma relação significativa com a contribuição científica de Marx. No entanto, o patriotismo autoritário de Fidel e o aventureirismo romântico do Che são culturas de natureza bem distinta, por mais que esses dois heróis possam ter assimilado boa parte das idéias do Marx utópico.
Agora, o pior mesmo é achar que partido político tem DNA. Pois revela ignorância de que as mudanças no desenvolvimento das sociedades humanas não têm caráter darwiniano, e sim lamarckiano. Um DNA é copiado, letra por letra, de uma geração para outra. Já as sociedades vivem em simbiose com suas culturas, o que permite que o conhecimento e experiência adquiridos pelos mais maduros sejam transferidos aos que os sucedem. Daí porque é tão freqüente que haja progresso em mudanças socioeconômicas, sociopolíticas, e socioculturais, fenômeno inteiramente estranho à história natural. Nas sociedades humanas há acúmulo de benéficas inovações pela transmissão direta. E no âmbito restrito dos partidos políticos, estão à disposição da gentil freguesia os trabalhistas britânicos, os democratas de esquerda italianos ou os socialistas espanhóis e chilenos, para ilustrar o contraste entre desenvolvimento e evolução biológica. Em outras palavras: na esfera das ciências humanas e das sociais aplicadas, DNA só pode ser nome de lavanderia com cobertura de agência de publicidade.
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José Eli da Veiga é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP e autor de Desenvolvimento sustentável - o desafio do século XXI (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).
Fonte: Valor Econômico,
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