Por: O Estado de S.Paulo
Raras vezes se terá visto em um país democrático um chefe de governo investir de forma tão contundente contra um órgão de imprensa, como fez o presidente Lula, ao tomar conhecimento da reportagem da revista Veja em que ele aparece como titular de uma suposta conta no exterior. Mas é compreensível a inusitada reação do presidente, chamando o autor da matéria de "bandido, mau-caráter, malfeitor, mentiroso" e repetindo três vezes que a revista "chegou ao limite".
É incontestável que a publicação da reportagem colide com a responsabilidade ética que deve nortear as decisões de todo veículo de comunicação que pretenda ser levado a sério - sobretudo quando é grande a sua audiência.
Segundo a Veja, o banqueiro Daniel Dantas, do Grupo Opportunity - que acusa o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares de haver sugerido que o grupo doasse entre US$ 40 milhões e US$ 50 milhões para contar com o governo na batalha pelo controle da Brasil Telecom -, teria montado um dossiê explosivo sobre membros da atual elite dirigente do País. Graças a um ex-agente da CIA, trabalhando para a empresa de espionagem Kroll Associates, Dantas disporia de dados sobre contas no estrangeiro do presidente Lula e das personagens mencionadas. Uma lista com nomes e valores, que teria sido produzida a mando do banqueiro, saiu na Veja.
Numa nota publicada ontem, Dantas nega ter encomendado investigações sobre qualquer autoridade ou que tenha entregue a quem quer que seja papéis "que serviram à matéria da revista", aos quais, de resto, nem teria tido acesso. Admite apenas ter falado a um colunista da Veja. Numa entrevista à Folha de S.Paulo, declarou que a revista "mente quando diz que tinha um compromisso comigo para preservar meu nome como fonte, caso essas contas fossem verdadeiras. Isso nunca existiu". Em entrevista ao Estado, o banqueiro soltou uma frase sibilina sobre as suas atribulações: "Se antes eu tinha acesso à cena, passei a enxergar os bastidores, que não posso comentar."
Também a Veja, depois do veemente protesto do presidente, emitiu uma nota. Nela, sustenta que o material foi publicado "para evitar o uso das supostas contas como elemento de chantagem". À luz das manifestações de Dantas, a alegação soa no mínimo inconvincente. A revista diz ainda que a reportagem não considerou a denúncia nem autêntica nem falsa, "por não dispor de meios suficientes para fazê-lo". Isso lembra o infame Dossiê Cayman sobre contas imaginárias de líderes tucanos, entre eles Fernando Henrique Cardoso. O dossiê foi noticiado com a ressalva de que se compunha de "documentos sem autenticidade comprovada". A Veja acaba de incorrer na mesma falta grave.
A questão de princípio é inequívoca: por mais rigoroso o escrutínio com que a mídia deva tratar figuras públicas, em nome do interesse também público, acusações sem provas contra elas, ou sem ao menos indícios veementes, não podem ser propagadas - por definição. Do contrário, é denuncismo. A questão específica complementa a anterior. O fato de o PT e o governo Lula terem sido expostos como criadores ou cúmplices do megaesquema de compra de políticos não autoriza que se publique seja lá o que for que apareça a respeito de seus integrantes, sem o devido fundamento. Muito menos, com "inúmeras inconsistências", como a própria Veja se referiu ao dossiê.
Pois, à parte o problema ético de fundo, esse tipo de noticiário leva água para o moinho dos quadrilheiros do mensalão e seus aliados, com a sua propaganda indecente de que os delitos da "sofisticada organização criminosa" apontada pelo procurador-geral da República não passam de fabricações da mídia, em complô com a oposição. O malefício é tanto maior quando o órgão de imprensa que divulga uma história claramente inverossímil com o objetivo de desintegrar o governo vinha se destacando pela publicação de denúncias bem fundamentadas, até agora não desmentidas.
Nestes 12 meses que se seguiram ao flagrante de corrupção nos Correios, a contribuição da imprensa para a elucidação dos fatos não foi menor do que o senso ético que ela quase sempre demonstrou. Esse patrimônio não pode ser malbaratado pela divulgação de uma reportagem que agride as mais comezinhas normas éticas.
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