quinta-feira, abril 13, 2006

O procurador repetiu o que temos escrito desde 2003

Por: Reinaldo Azevedo


Alvíssaras! Apareceu, enfim, alguém na República, além de Primeira Leitura e de mais uns dois ou três (cito dois: Olavo de Carvalho e Diogo Mainardi, mas há mais gente, não muita), que entendeu o que está em curso e o que é, de fato, o governo do PT. Atentem que nem escrevi “governo Lula”. Escrevi “governo do PT”. O procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, atribuiu nome e sobrenome ao que viu. Chamou o ajuntamento de pessoas para assaltar o Estado de “quadrilha” e disse que uma “organização criminosa” se formou para tramar a perpetuação de um partido no poder.
É rigorosamente o que se vem sustentando aqui muito antes de qualquer denúncia vir à luz. O que o procurador escreve com base na investigação e nos autos — um trabalho que até Márcio Thomaz Bastos considera “histórico” —, Primeira Leitura vem sustentando pelas lentes da economia política desde 2001 — antes, portanto, de Lula chegar ao poder. Parte considerável da imprensa ainda não vê o que está em curso. Algumas ex-sólidas reputações do jornalismo falam até em um suposto movimento “macarthista” contra o PT; fatias consideráveis da imprensa sustentam que “todo mundo é igual”, ignorando o ineditismo dos métodos petistas — “ineditismo” para o Brasil, não para a história da esquerda.
A imprensa, é fato, cumpriu parte da necessária tarefa de desmascarar o PT. A partir de um determinado momento, os crimes não podiam mais ser ignorados ou considerados corriqueiros. E declinou de algumas outras atribuições. O marco zero dessa peça acusatória do procurador é a entrevista de Roberto Jefferson concedida à jornalista Renata Lo Prete, da Folha. Foi ela que originou a CPI e as demais investigações, com indícios de crimes que foram aparecendo aos borbotões. A história do Brasil não poderá jamais ignorar aquelas páginas. O que me parece é que a própria Folha, às vezes, a ignora.
O que a larga maioria da imprensa se negava e se nega a admitir — e também as oposições, até outro dia ao menos — é que isso que se vê é um sistema. Já não estávamos mais falando de batedores de carteira, do velho cartorialismo, dos gatunos das porcentagens. Sem que esses males tenham sido extintos, outro, muito maior, sobre eles deitou a sua sombra: o clepto-stalinismo; o assalto ao Estado ancorado numa visão de mundo e numa ideologia. Tudo muito capenga, é verdade, mas com uma marca inequívoca.
A própria Folha, que tem na sua história a entrevista que deu origem ao deslindamento do que aí se vê, investe contra a sua conquista e seu patrimônio jornalístico quando divide o alto de uma primeira página entre um editorial algo tardio sobre os desmandos do governo Lula e uma denúncia envolvendo Geraldo Alckmin e a Nossa Caixa. A leitura óbvia a ninguém escapa: "São todos iguais". Que noticiasse as duas coisas, é claro. Mas a opção pelo “equilíbrio”, talvez centimétrico, naquele dia, só serve para deseducar e produzir obscurantismo. As suposições freqüentes de alguns articulistas de que vestidos de um costureiro ou propaganda de um banco, ainda que irregulares, são a face tucana do que, no petismo, segundo o procurador, é a “quadrilha” é uma mentira histórica, uma mímica patética da justiça perfeita. A humanidade conheceu juízes assim. Pol Pot era um deles. Um danoninho não vale por um bifinho.
Que se noticie tudo! Mas que se faça a caracterização do procurador: clara, inequívoca, inquestionável. E isso nem sempre acontece, seja por comodismo, ideologia ou arrogância. Ao longo destes quase três anos e meio do governo do PT, tive a chance de conversar com muitos políticos da oposição. Eram e são raros os que admitem que o PT tem um projeto de poder que, no seu pleno exercício, exclui a democracia. O conceito do Moderno Príncipe, na formulação gramsciana, mesmo depois de devidamente explicada, lhes parece fantasiosa. Por mais que os petistas dêem provas cabais de que assim se constituem. Trata-se de arrogância, de não reconhecer o real tamanho do inimigo. Acham que ignorando as suas qualidades, ainda que nefastas, ele se torna menos perigoso.
Uma parte da imprensa não vê o óbvio por ideologia e comodismo — o comodismo inclui um tanto de burrice e de analfabetismo político. Jornalistas quase nunca lêem teoria política. Quase nunca lêem coisa nenhuma. Alegam falta de tempo e rotina estafante. É claro que não é verdade.
É por isso que morro de tédio quanto leio o texto de algumas reputações já encanecidas — o que lhes deveria dar experiência e sabedoria, mas só aumenta a lista de livros que não leram — garantindo que Lula se tornou igual aos outros; que o PT não mudou nada; que resolveu seguir o padrão de sempre; que Brasil é assim desde as capitanias hereditárias; que o Apedeuta traiu seus princípios; que os métodos do atual governo em nada diferem dos de PSDB e PFL; que Eduardo Azeredo e Roberto Brant (que deveriam ter sido cassados, como os outros todos, observo) provam que não há diferença entre oposição e situação; que as denúncias, enfim, contra Alckmin são uma ducha de água fria no banho de ética prometido pelo candidato tucano.
Eu, confesso, não gosto dessa imagem do “banho de ética”. Se Alckmin me desse bola, ele jamais a teria usado. E não porque ele não possa sustentá-la. É que essa conversa da política feita a partir do aprumo ético costuma ser coisa das mais complicadas — e até perigosa. A “ética” como departamento de polícia e organização secreta para denunciar adversários é uma invenção do petismo em conluio com seu braço jornalístico. Funcionou durante os oito anos do governo FHC como uma máquina de destruir reputações e de inventar escândalos fantasiosos: Sivam, dossiê Cayman, caso Eduardo Jorge (“EJ”, como se escrevia, para remeter, claro, a PC), privatizações. Escândalos feitos de nada, que desapareceram no choque com a realidade. Mas que contribuíram para entronizar o poder de certas nulidades intelectuais e morais nas redações.
Os canibais se esbaldavam. “Ética” é sempre a compreensão dominante de um conjunto de indivíduos sobre determinado assunto. A “ética” mais influente, não raro, coincide com a do grupo que consegue se impor sobre os demais. No governo FHC, a imprensa aderiu à "ética" petista. Era o tempo em que não se podia nomear alguém de um partido aliado sem que se acusasse "fisiologismo", como se fosse coisa nossa governar com... aliados!Não é raro que se transfira para um ente de razão — partido ou Estado — a aplicação, então, dessa “ética coletiva”, que pode simplesmente esmagar a moral individual. O PT continua, por incrível que pareça, a ditar os valores "éticos". Sempre que vocês lerem no jornal a acusação de que Lula traiu seus compromissos, não duvidem: quem escreve é um petista ressentido. A cada vez que um jornalista “neste país” puser em pé de igualdade o PT e os partidos de oposição — por mais que estes pratiquem irregularidades, que têm de ser denunciadas e noticiadas —, quem fala é uma facção do PT. Omitir a particularidade petista é fazer o jogo do partido.
E a particularidade do PT está no fato de que “desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o Moderno Príncipe e serve ou para aumentar o seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costumes” (in Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, vol. 3, pág. 19).
Escrevemos isso desde 2003. A rigor, o caráter do PT era apontado aqui desde 2001, ano em que o site entrou no ar. Não há crime de fato sem que haja antes uma idéia criminosa. A idéia criminosa dispensa o crime de fato para que possa ser apontada e denunciada. Há penas de aluguel — aluguel ideológico, quando menos — de sobra para censurar os crimes de fato, mas flertando com idéias criminosas.
De resto, quem iguala crimes desiguais investe é na impunidade. Sempre que vocês lerem por aí o famoso “é tudo a mesma coisa”, lembrem-se do relatório do procurador-geral da República. Que se punam e se noticiem todas as transgressões. Mas que se faça a distinção entre os atos que atentam contra a democracia e o Estado de Direito e os que testam a sua validade.
Contra a imprensa do “todo mundo é igual”, usem o texto do procurador Antonio Fernando de Souza.
[reinaldo@primeiraleitura.com.br]Publicado em 12 de abril de 2006.

Fonte: Primeira Leitura

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