Por CARTA CAPITAL
a Folha mostrou a sua cara e acabou dando um tiro no pé. Choveram cartas para o ombudsman do jornal ? que se limitou a escrever, quase clandestino, que a resposta pecara por falta de ?cordialidade?. Um manifesto de repúdio ao jornal e de solidariedade, organizado pelo professor Caio Navarro de Toledo, da Unicamp ? com a primeira adesão de Antonio Candido, Margarida Genevois e Goffredo da Silva Telles ? passa imediatamente a circular na internet e, apesar do carnaval, conta com mais de 3 mil assinaturas.
Quase ninguém lê editorial de jornais, mas quase todos leem a seção de cartas. E foi assim que tudo começou. Os fatos: a Folha de S.Paulo, em editorial de 17/2, aplica a expressão ?ditabranda? ao regime militar que prendeu, torturou, estuprou e assassinou. O primeiro leitor que escreve protestando recebe uma resposta pífia; a partir daí, multiplicam-se as cartas: as dos indignados e as dos que ainda defendem a ditadura. Normal.
Mas eis que chegam a carta do professor Fábio Konder Comparato e a minha: "Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de "ditabranda"? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar "importâncias" e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi "doce" se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala ? que horror!? (esta escriba). "O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17/2, bem como o diretor que o aprovou, deveria ser condenado a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana? (Prof. Fábio).
As cartas são publicadas acompanhadas da seguinte Nota da Redação ? "A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ?indignação? é obviamente "cínica e mentirosa"."
Pronto. Como disseram vários comentaristas, a Folha mostrou a sua cara e acabou dando um tiro no pé. Choveram cartas para o ombudsman do jornal ? que se limitou a escrever, quase clandestino, que a resposta pecara por falta de "ordialidade". Um manifesto de repúdio ao jornal e de solidariedade, organizado pelo professor Caio Navarro de Toledo, da Unicamp ? com a primeira adesão de Antonio Candido, Margarida Genevois e Goffredo da Silva Telles ? passa imediatamente a circular na internet e, apesar do carnaval, conta com mais de 3 mil assinaturas. Neste, depoimentos veementes de acadêmicos, jornalistas (inclusive nota do sindicato paulista), artistas, estudantes, professores do ensino fundamental e médio, além de blogs. Vítimas da repressão escrevem relatos de suas experiências e até enviam fotos terríveis. A maioria lembra, também, o papel da empresa Folha da Manhã na colaboração com a famigerada Oban.
O que explica essa inacreditável estupidez da Folha?
A meu ver, três pontos devem ser levantados: 1. A combativa atuação do advogado Comparato para impedir que os torturadores permaneçam ?anistiados? (atenção: o caso será julgado em breve no STF!). 2. O insidioso revisionismo histórico, com certos acadêmicos, políticos e jornalistas, a quem não interessa a campanha pelo ?Direito à Memória e à Verdade?. 3. A possível derrota eleitoral do esquema PSDB-DEM, em 2010. (Um quarto ponto fica para ?divã de analista?: os termos da nota ? não assinada ? revelam raiva e rancor, extrapolando a mais elementar ética jornalística.)
Dessa experiência, para mim inédita, ficou uma reflexão dolorosa, provocada pela jornalista Elaine Tavares, do blog cearense Bodega Cultural, que reclama: ?Sempre me causou espécie ver a intelectualidade de esquerda render-se ao feitiço da Folha, que insistia em dizer que era o ?mais democrático? ou que ?pelo menos abria um espaço para a diferença?. Ora, o jornal dos Frias pode ser comparado à velha historinha do lobo que estudou na França e voltou querendo ser amigo das ovelhas. Tanto insistiu que elas foram visitá-lo. Então, já dentro da casa do lobo ele as comeu. Uma delas, moribunda, lamentou: ?Mas você disse que tinha mudado?... E ele, sincero: ?Eu mudei, mas não há como mudar os hábitos alimentares?. E assim é com a Folha (...). São os hábitos alimentares?.
O que fazer? Muito. Há a imprensa independente, como esta CartaCapital. Há a internet. Há todo um movimento pela democratização da informação e da comunicação. Há a luta ? que sabemos constante ? pela justiça, pela verdade, pela república, pela democracia. Onde quer que estejamos.
Maria Victoria Benevides é socióloga com especialização em Ciências Políticas e professora titular da Faculdade de Educação da USP
Fonte: CMI Brasil
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