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terça-feira, maio 23, 2006

Se eu fosse Daniel Dantas

Por: Reinaldo Azevedo (Primeira Leitura)


Huuummm, se eu fosse Daniel Dantas, como está no título, é claro que levaria uma vida menos preocupada com algumas mesquinharias demasiadamente humanas. Você sabe, não é, leitor?, condomínio, escola das crianças, supermercado, essas bobagens que os mais disciplinados costumamos até pôr num arquivo do Excel para fugir do monstro da inadimplência... Não estou entre aqueles que olham para o banqueiro com inveja. Ao contrário: louvo-lhe o talento, cantado em prosa e verso pelos mercados. O homem é visto assim como um Buffalo Bill da área, ganhando sempre, correndo todos os riscos, sacando antes de seus inimigos.
Eu, o máximo de risco que corro é ler a Suma Teológica ou, antes, o perigosíssimo Erasmo. Vai que, numa hora dessas, eu caia num valo da lógica e nunca mais me levante — não da crença, mas do risco da descrença, que tem de ser permanente em todo homem de fé: ou ela não é para valer. Dantas, não. Seu mundo parece ser bem mais agitado do que isso. Como sempre sei tudo o que não sei — dirigir automóveis ou mexer com eletricidade, por exemplo —, fico exposto apenas a essas ridicularias. No Brasil, certas habilidades tanto enobrecem como empobrecem um homem. Dantas decidiu ser rico e parece ser bom pra chuchu no que faz. Meus sinceros parabéns.
Livre das questões demasiadamente humanas, se eu fosse Dantas, no entanto, não estaria assim tão feliz e me sentiria um tanto marginalizado, como aquele indiozinho do poema I Juca Pirama, de Gonçalves Dias: “Rejeitado da morte na guerra, rejeitado dos homens na paz”. O país é surrealismo puro. Pô, ninguém quer falar com Dantas. Às claras, a gente viu, o governo não quer. Lula preferiu atacar os jornalistas da revista Veja — Márcio Aith e Diogo Mainardi, supõe-se. Seriam “bandidos”. Com Dantas, é visível, ele não quer briga. Ao contrário: mandou o criminalista Márcio Thomaz Bastos numa “missão institucional” (segundo Tarso Genro) para falar com o banqueiro. Institucional? Dantas virou agora um ente do Estado? Instituição?
Digressão dialéticaA casa escolhida foi a do senador Heráclito Fortes (PFL-PI), que vem a ser um dos coordenadores de seu partido na campanha presidencial do tucano Geraldo Alckmin. Ok. Missões institucionais costumam pedir um território neutro: por que não a casa de Heráclito? Seu homônimo mais famoso, o de Éfeso, é considerado o pai original de uma das mais influentes picaretagens da história do pensamento: a dialética.
Dialético, na prática, é tudo aquilo que, não tendo uma explicação segundo os seus próprios termos, apela então à (i)lógica dos contrários para justificar o injustificável. Se tudo sai como NÃO deveria ser, então se diz que é porque existe a dialética.
Um exemplo: rebeliões de presos só ocorrem porque existem os presídios. O preço de trancafiarmos os bandidos, como eles merecem, seria conviver com essa ameaça. O que é útil para a sociedade seria, então, um risco: culpa da dialética! Não ocorre a um maldito dialético que um governo possa ser competente tanto para prender o bandido como para manter a disciplina nos presídios. A dialética é sempre diretamente proporcional à miséria dos países.
É como sarampo e barriga d’água. Brota mais dialética no Haiti, na Bolívia e no Brasil do que na Dinamarca ou na Suécia... Até as revoluções comunistas, filhas da dialética, só atacaram em país pobre. Feito lepra. Marx tinha previsto a primeira na Alemanha; aconteceu na Rússia semifeudal. Nos anos 60 e 70, enquanto a Europa consolidava a social-democracia, sem dialética, a dialética atacava em Cuba e na África. O vírus leninista matou mais do que a gripe espanhola e, infelizmente, não sumiu no ralo histórico, como o outro, no ralo biológico.
Terminou a digressãoJá vou voltando. O governo e Lula não querem briga com Dantas. Ele confessou a Diogo Mainardi que Delúbio Soares lhe pediu US$ 40 milhões e que houve uma “sincronia” entre o desembaraço de demandas suas no governo e a contratação de um advogado amigo de Dirceu, e o criminalista que faz plantão no Ministério da Justiça o chama para um colóquio institucional. Quem sabe tenham debatido a obra de Heráclito, o de Éfeso? Ou teria Bastos, em meio à maior crise de insegurança pública jamais vista no país, se ocupado de discutir a segurança de apenas um homem: a de Lula?
Tanto quanto o governo não quer briga com Dantas — Lula não gosta é de Diogo Mainardi —, a oposição parece não querê-lo como um auxiliar para desvendar os segredos do mensalão e os bastidores da república petista. É visível que ninguém quer tocar no assunto. Sei bem: um homem como o banqueiro, que gosta de se arriscar, que conhece os meandros do mundo dos negócios, que tende a considerar, a exemplo de Heráclito, que o fogo é a origem de tudo e que todas as mercadorias são trocáveis por ouro, não deve padecer de carências afetivas. Não dá a menor bola que não liguem para ele. Acha normal que prefiram esquecê-lo.
Falo por mim. Eu, que já sei ser mentira que o fogo é o elemento essencial da natureza; eu, que não acredito em dialética; eu, que suponho que nem toda mercadoria é a outra forma do ouro, eu sei que me sentiria terrivelmente rejeitado, incapaz de conviver nesse limbo. Se o ministro me chamasse para uma conversa institucional, eu não teria nada a dizer a ele, a não ser recomendar que pegasse o boné e fosse para casa. Por absoluta insuficiência de provas. Explico-me: quero ver alguém provar que Bastos é mesmo o ministro da Justiça. Conceitualmente, não é. Só um desses empiristas empedernidos ainda insistira nessa tese, desde que, claro, desprezadas todas as evidências em contrário.ConcluindoAlém de estar me sentindo rejeitado, se eu fosse Dantas, também botaria as barbas de molho. É muito grande o número de pessoas que gostariam que ele jamais tivesse existido, que determinadas conversas jamais houvessem acontecido, que certos fatos jamais tivessem sido inscritos na história e, talvez, escritos na implacável “memória” de Dantas. Se eu fosse ele, contaria tudo o que sei para me preservar de “conversas institucionais”.Diário do meu crânio O médico tirou hoje os pontos de um dos cortes. Tudo bacana. Sabe, leitor, quando cai a casquinha da ferida, ainda não muito bem cicatrizada, de joelho de criança? Resta um ferimento de um vermelho muito vivo, que não sangra, de aparência algo gelatinosa. Este fica pouco acima do alto da testa, do cocuruto mesmo, quase como um dos estigmas.
A torcida de uns três ou quatro para que tudo fosse à breca não se realizou. Dr. Marcos Stavale fez direito o seu trabalho, coisa rara no Bananão, e a torcida do bem, centenas de vezes maior, ganhou a parada. A parte de trás do crânio ainda exibe uma costura pós-moderna, que finjo ser body art. No caso, meu corpo é suporte da poética da neurocirurgia. Cada ponto é um pé de verso que poderia remeter a uma épica muito antiga.
Essa história toda começou com a galhofa, quando fiz uma ressonância magnética, assumiu tons de elegia, nos dias mais tristes, e agora, homem do meu tempo, já remete a certo lirismo vagabundo, que apela a joelho ralado de criança. Hora dessas volto a uma especulação a que já me dediquei, e outros antes de mim, sobre por que não conseguimos mais ser épicos.
Eis outra preocupação que Dantas e Bastos certamente não têm.
[reinaldo@primeiraleitura.com.br]

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